“Ver
as coisas até o fundo...
E
se as coisas não tiverem fundo?
(...)
Ó,
face do mundo, só tu, de todas as faces,
És
a própria alma que refletes”
ÁLVARO
DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)
Decerto, há um quê de inescrutável, de intangível, no ser.
O nosso constante devir, a nossa constante inconstância, incoerência... Enorme
parte do que somos se perde desde sempre nos limites do que pode ser expresso.
Eis por que a primeira postagem, das três que compreendem o compêndio desta
narrativa, começa com a minha amantíssima Joni Mitchell e dois versos da
antológica canção “Hejira”, essa ode
de desilusão. “Eu sei, ninguém vai me
mostrar tudo.” Todos nós chegamos e partimos da mesma forma: desconhecidos.
Cada um tão profundo e tão superficial...
Peço
desculpas, meus queridos leitores (que não são muitos, mas estejam certos de
que são queridos. Vocês bebem dessa fonte que se derrama de mim nos meus textos
e é como se fôssemos irmãos; isto nos aproxima à medida que parte de mim se
revela nos meus sôfregos esforços de abrir minha caixa torácica e mostrar o meu
coração), por não escapar ao clichê pessoano. Seus textos podem estar
vulgarizados pelas páginas e páginas afora da internet, mas creio que, quando
recorro ao Poeta de Lisboa, eu saiba o que estou fazendo.
Outro nome
de que abusei nas postagens anteriores foi o americano Whitman. Este parece
dizer o contrário da canadense, que a alma aflora na superfície da pele... A princípio
contraditoriamente, não tenho como discordar. Mas contraditoriamente só a
princípio: ponhamos de lado o romantismo. Não acredito nessa baboseira de alma –
e nem Pessoa e nem Mitchell e nem Whitman! A verdade é que, por vezes, quando
digo alma, quero dizer essência. Então vejo que não há essência e que as coisas
mudam... Então digo alma querendo dizer essa essência passageira, a essência do
instante dado, o suprassumo do efêmero. Mas até isso é uma ilusão dos sentidos,
que filtram tudo e tudo mentem. A realidade não se resume à nossa experiência
estética, presunçosos leitores... Não creio numa alma enquanto uma existência
metafísica, transcendente, intermediária entre os homens e Deus. Sendo essa a
definição vulgar, não creio em alma, absolutamente.
Mas não tenho problemas em admitir que, havendo ou não uma essência além da
substância, haja uma parte oculta em todos nós, invariavelmente. Contento-me
com isso; os outros não. E nessa busca por algo maior, nessa refusa a se
contentar com o materialismo opaco, poetizam de todas as maneiras a tragédia da
existência, caiam os muros de branco de neve e ornam as paredes mórbidas de
escarlates desbotados. Obsta, contudo, o saber
que nada disso é verdade, porque nada é verdade.
Não
sabem nada do que não veem, e o mesmo tanto sabem do que enxergam. Porque eis
que não enxergam nada. Então vêm uns filósofos de moral e uns metafísicos
meia-bosta inquirir sobre o meu comportamento, as minhas peripécias soturnas, e
dizer que isso tudo é errado! Ó, plêiade de pensadores, que peguem o certo e o enfiem
no cu, se nele couber. Não devo nada a ninguém. O que sabem vocês que excede o
que eu sei? Pois que ninguém sabe nada, eu digo. E nesse mundo de mudança e contingência,
nada há de ser permanente, nem o próprio mundo ele mesmo.
Falemos de alma, então, como sendo a parte oculta de nós que se confunde com a mente, principalmente a parte que não se expressa do que somos. E sendo essa alma impalpável, sobra o corpo, esse fremente e real deslumbramento. Ainda que
irreal mesmo o corpo, reais as minhas convulsões sobre ele. Daí, convergem
esses conceitos numa só existência indivisível, meu composto corpo-alma, e
ainda o corpo de quem estiver comigo e sua alma presumida, numa sopa orgânica e
contígua. Serotonina: eis o meu deus perante o qual sou bacante alienada,
extática!
Mas
lembremos que eu não sou filósofo!...
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A diegese seguia, antes dessa digressão ensaística, pelo
que seria o meu frustrante retorno a casa. Depois de um começo de sexo, eu
sempre tenho problemas com a consciência. Geralmente, as minhas relações
sexuais envolvem a degradação pessoal de uma das partes (sim, geralmente uma das duas partes). Evadindo-me da tentação de definir “degradante”, diga-se
que eu me sentia certa forma culpado pelo meu anônimo. O sangue desacelera nas
veias e de repente veem-se abertos os caminhos para sortes incontáveis de
reflexões... Percebi, por exemplo, que estava morrendo de medo dele o tempo
todo, e que era mais medo do que atração, e que a atração era mais pelo medo do
que por ele. Então lembrei que tudo aquilo não tinha nada a ver com sexo; era
apenas uma revolta minha que instintivamente me arrastava para o marginal, para
o anti-normativo... Senti nojo de mim mesmo. Lembrei da minha dimensão humana
nesta história. Lembrei que não era rico e que qualquer centavo que eu
continuasse gastando ia fazer falta pra algo importante. Lembrei que o meu
bonitinho era um coitado cujo vício estava prestes a ser usado para rebaixá-lo,
para o levar a fazer algo que não queria em troca de um veneno. Uma verdadeira
epifania moral.
Caminhávamos
lado a lado, em silêncio, e eu o olhava. Ainda era lindo, mas de repente menos
atraente. Mesmo assim, como que por um impulso divino plutônico:
“A gente podia ir pra um motel”, eu
disse. Ele disse “tá” e pegamos o primeiro táxi que passou.
Ele
falou com o taxista. Ele escolheu o motel. Fomos atendidos por um recepcionista
no mínimo esquisito e eu paguei o olho da cara por uma suíte ordinária. Não sei
se os decepciono, leitores, mas não vou ir muito a fundo nos detalhes “sórdidos”.
Vamos, contudo, aos pontos interessantes.
Ele
tinha um pinto rosadinho! E isso é certamente válido mencionar! Segundo, não
que eu creia ser realmente plausível a ideia de passividade em qualquer forma
de sexo que não seja estupro, mas sendo esse o termo que usam geralmente, foi essa a sua postura. E eu
esperava que ele fosse me comer. Não
foi o que aconteceu. Curiosa a questão estereotípica. Um homenzarrão macho como
aquele! Como caem por terra as nossas ideias quadradas...
Terceiro,
e isto é a cereja do meu manhattan
cocktail!, o recepcionista do motel – estou rindo enquanto escrevo isto –
nos propôs um ménage! Primeiro ele
ligou pro nosso quarto. Quem atendeu foi o meu loirinho sem nome e eu achei
estranhíssimo o tom da conversa. “Que
houve?”, perguntei. Ele me disse e eu não acreditei. Sério, eu não acreditei; pensei que ele estivesse
me zoando. “Para com isso”, eu disse.
Eu permaneci descrente até o coiso bater na nossa porta, com uma porra duma
toalha na mão, dizendo “Aqui, ó, a toalha
que vocês pediram.” “Desculpa, eu não
pedi nada. Não vai rolar. Se manda.” Atendi o cara, peladão, e fui bem
direto. Já tem mais de um mês que isso aconteceu e eu ainda fico inculcado com
essa porra. Como assim? Que merda é essa? Será que isso é prática comum nos motéis
niteroienses e eu não sei? O loiro ria que só...
Nos
demos relativamente bem, eu e o cara. Ah, antes que eu me esqueça, outro
detalhe é que ele me cobrou pela noite! Me senti bem menos explorador depois
disso. Foi certamente um bálsamo para a consciência...
A
respeito dos nomes, tinha a nítida impressão de que chegamos a nos apresentar
em algum momento naquela noite, mas depois, quanto perguntei qual era mesmo o
nome dele, ele não respondeu. Trocamos telefones sob apelidos nas agendas. Eu
fiquei sendo o Ruivo e ele o Loiro.
Cuidou
de dizer que não me apegasse, que era só sexo. Eu não esperava mais que isso.
Outra coisa que eu não esperava era que ele me ligasse às duas da tarde, tendo
nós saído do motel às oito da manhã, pra perguntar se a gente podia se
encontrar de novo. “Tá bom, ‘Só Sexo'",
pensei, e disse que sim.
Nos
encontramos algumas vezes. Hoje passamos o dia juntos, transamos na praia.
Depois, enquanto repetíamos a dose na casa dele, ele chorou, lamentando ter
terminado com uma namorada que eu nem sabia que ele tinha. Eu fiquei sem graça
e fui embora. Coisa desconcertante, chorar durante o sexo. Ele não me cobra mais,
embora eu ainda pague as bebidas. Enfim, o que começou movido a dinheiro...
Obviamente,
muitos detalhes da noite eu omiti, ou porque não quis dizer, ou porque achei
irrelevante, ou porque fiquei com vergonha e tal. Mas o básico tá aqui.
A
propósito, hoje, finalmente, ele me disse seu nome: P. Eu sabia que tínhamos nos apresentado! Lembrei assim que ele me
disse. Foi na praia do Gragoatá.
Se eu
lhe disse meu nome? Não.
Aqui está a canção de onde tirei a epígrafe do primeiro post. Grande letra, grande música.
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Aqui está a letra.