sábado, 26 de maio de 2012

Parte 3 (e final) da história


“Ver as coisas até o fundo...
E se as coisas não tiverem fundo?
(...)
Ó, face do mundo, só tu, de todas as faces,
És a própria alma que refletes”

ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)


Decerto, há um quê de inescrutável, de intangível, no ser. O nosso constante devir, a nossa constante inconstância, incoerência... Enorme parte do que somos se perde desde sempre nos limites do que pode ser expresso. Eis por que a primeira postagem, das três que compreendem o compêndio desta narrativa, começa com a minha amantíssima Joni Mitchell e dois versos da antológica canção “Hejira”, essa ode de desilusão. “Eu sei, ninguém vai me mostrar tudo.” Todos nós chegamos e partimos da mesma forma: desconhecidos. Cada um tão profundo e tão superficial...
            Peço desculpas, meus queridos leitores (que não são muitos, mas estejam certos de que são queridos. Vocês bebem dessa fonte que se derrama de mim nos meus textos e é como se fôssemos irmãos; isto nos aproxima à medida que parte de mim se revela nos meus sôfregos esforços de abrir minha caixa torácica e mostrar o meu coração), por não escapar ao clichê pessoano. Seus textos podem estar vulgarizados pelas páginas e páginas afora da internet, mas creio que, quando recorro ao Poeta de Lisboa, eu saiba o que estou fazendo.
            Outro nome de que abusei nas postagens anteriores foi o americano Whitman. Este parece dizer o contrário da canadense, que a alma aflora na superfície da pele... A princípio contraditoriamente, não tenho como discordar. Mas contraditoriamente só a princípio: ponhamos de lado o romantismo. Não acredito nessa baboseira de alma – e nem Pessoa e nem Mitchell e nem Whitman! A verdade é que, por vezes, quando digo alma, quero dizer essência. Então vejo que não há essência e que as coisas mudam... Então digo alma querendo dizer essa essência passageira, a essência do instante dado, o suprassumo do efêmero. Mas até isso é uma ilusão dos sentidos, que filtram tudo e tudo mentem. A realidade não se resume à nossa experiência estética, presunçosos leitores... Não creio numa alma enquanto uma existência metafísica, transcendente, intermediária entre os homens e Deus. Sendo essa a definição vulgar, não creio em alma, absolutamente. Mas não tenho problemas em admitir que, havendo ou não uma essência além da substância, haja uma parte oculta em todos nós, invariavelmente. Contento-me com isso; os outros não. E nessa busca por algo maior, nessa refusa a se contentar com o materialismo opaco, poetizam de todas as maneiras a tragédia da existência, caiam os muros de branco de neve e ornam as paredes mórbidas de escarlates desbotados. Obsta, contudo, o saber que nada disso é verdade, porque nada é verdade.
            Não sabem nada do que não veem, e o mesmo tanto sabem do que enxergam. Porque eis que não enxergam nada. Então vêm uns filósofos de moral e uns metafísicos meia-bosta inquirir sobre o meu comportamento, as minhas peripécias soturnas, e dizer que isso tudo é errado! Ó, plêiade de pensadores, que peguem o certo e o enfiem no cu, se nele couber. Não devo nada a ninguém. O que sabem vocês que excede o que eu sei? Pois que ninguém sabe nada, eu digo. E nesse mundo de mudança e contingência, nada há de ser permanente, nem o próprio mundo ele mesmo.
            Falemos de alma, então, como sendo a parte oculta de nós que se confunde com a mente, principalmente a parte que não se expressa do que somos. E sendo essa alma impalpável, sobra o corpo, esse fremente e real deslumbramento. Ainda que irreal mesmo o corpo, reais as minhas convulsões sobre ele. Daí, convergem esses conceitos numa só existência indivisível, meu composto corpo-alma, e ainda o corpo de quem estiver comigo e sua alma presumida, numa sopa orgânica e contígua. Serotonina: eis o meu deus perante o qual sou bacante alienada, extática!
            Mas lembremos que eu não sou filósofo!...

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A diegese seguia, antes dessa digressão ensaística, pelo que seria o meu frustrante retorno a casa. Depois de um começo de sexo, eu sempre tenho problemas com a consciência. Geralmente, as minhas relações sexuais envolvem a degradação pessoal de uma das partes (sim, geralmente uma das duas partes). Evadindo-me da tentação de definir “degradante”, diga-se que eu me sentia certa forma culpado pelo meu anônimo. O sangue desacelera nas veias e de repente veem-se abertos os caminhos para sortes incontáveis de reflexões... Percebi, por exemplo, que estava morrendo de medo dele o tempo todo, e que era mais medo do que atração, e que a atração era mais pelo medo do que por ele. Então lembrei que tudo aquilo não tinha nada a ver com sexo; era apenas uma revolta minha que instintivamente me arrastava para o marginal, para o anti-normativo... Senti nojo de mim mesmo. Lembrei da minha dimensão humana nesta história. Lembrei que não era rico e que qualquer centavo que eu continuasse gastando ia fazer falta pra algo importante. Lembrei que o meu bonitinho era um coitado cujo vício estava prestes a ser usado para rebaixá-lo, para o levar a fazer algo que não queria em troca de um veneno. Uma verdadeira epifania moral.
            Caminhávamos lado a lado, em silêncio, e eu o olhava. Ainda era lindo, mas de repente menos atraente. Mesmo assim, como que por um impulso divino plutônico:
            “A gente podia ir pra um motel”, eu disse. Ele disse “tá” e pegamos o primeiro táxi que passou.
            Ele falou com o taxista. Ele escolheu o motel. Fomos atendidos por um recepcionista no mínimo esquisito e eu paguei o olho da cara por uma suíte ordinária. Não sei se os decepciono, leitores, mas não vou ir muito a fundo nos detalhes “sórdidos”. Vamos, contudo, aos pontos interessantes.
            Ele tinha um pinto rosadinho! E isso é certamente válido mencionar! Segundo, não que eu creia ser realmente plausível a ideia de passividade em qualquer forma de sexo que não seja estupro, mas sendo esse o termo que usam geralmente, foi essa a sua postura. E eu esperava que ele fosse me comer. Não foi o que aconteceu. Curiosa a questão estereotípica. Um homenzarrão macho como aquele! Como caem por terra as nossas ideias quadradas...
            Terceiro, e isto é a cereja do meu manhattan cocktail!, o recepcionista do motel – estou rindo enquanto escrevo isto – nos propôs um ménage! Primeiro ele ligou pro nosso quarto. Quem atendeu foi o meu loirinho sem nome e eu achei estranhíssimo o tom da conversa. “Que houve?”, perguntei. Ele me disse e eu não acreditei. Sério, eu não acreditei; pensei que ele estivesse me zoando. “Para com isso”, eu disse. Eu permaneci descrente até o coiso bater na nossa porta, com uma porra duma toalha na mão, dizendo “Aqui, ó, a toalha que vocês pediram.” “Desculpa, eu não pedi nada. Não vai rolar. Se manda.” Atendi o cara, peladão, e fui bem direto. Já tem mais de um mês que isso aconteceu e eu ainda fico inculcado com essa porra. Como assim? Que merda é essa? Será que isso é prática comum nos motéis niteroienses e eu não sei? O loiro ria que só...
            Nos demos relativamente bem, eu e o cara. Ah, antes que eu me esqueça, outro detalhe é que ele me cobrou pela noite! Me senti bem menos explorador depois disso. Foi certamente um bálsamo para a consciência...
            A respeito dos nomes, tinha a nítida impressão de que chegamos a nos apresentar em algum momento naquela noite, mas depois, quanto perguntei qual era mesmo o nome dele, ele não respondeu. Trocamos telefones sob apelidos nas agendas. Eu fiquei sendo o Ruivo e ele o Loiro.
            Cuidou de dizer que não me apegasse, que era só sexo. Eu não esperava mais que isso. Outra coisa que eu não esperava era que ele me ligasse às duas da tarde, tendo nós saído do motel às oito da manhã, pra perguntar se a gente podia se encontrar de novo. “Tá bom, ‘Só Sexo'", pensei, e disse que sim.
            Nos encontramos algumas vezes. Hoje passamos o dia juntos, transamos na praia. Depois, enquanto repetíamos a dose na casa dele, ele chorou, lamentando ter terminado com uma namorada que eu nem sabia que ele tinha. Eu fiquei sem graça e fui embora. Coisa desconcertante, chorar durante o sexo. Ele não me cobra mais, embora eu ainda pague as bebidas. Enfim, o que começou movido a dinheiro...
            Obviamente, muitos detalhes da noite eu omiti, ou porque não quis dizer, ou porque achei irrelevante, ou porque fiquei com vergonha e tal. Mas o básico tá aqui.
            A propósito, hoje, finalmente, ele me disse seu nome: P. Eu sabia que tínhamos nos apresentado! Lembrei assim que ele me disse. Foi na praia do Gragoatá.
            Se eu lhe disse meu nome? Não.


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Aqui está a canção de onde tirei a epígrafe do primeiro post. Grande letra, grande música.


Aqui está a letra.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Poema reflexivo sobre a auto-extinção



Sei que vocês devem estar esperando a continuação da história das duas postagens anteriores, mas isso deve vir lá pro final desta semana. Enquanto isso, este é um poema que eu escrevi há cerca duns dois anos. Há de se perceber que eu estava numa atmosfera, enfim, não das melhores. Mas o que seria da arte sem o sofrimento, né mesmo?


Estou cansado e não me há cama.
Prostrado, um corpo pesado do pó da estrada
Sobre um par de pés ressecados
Os quais vagueiam andantes sobre uma vereda mui absurda,
Dum absurdo tamanho,
Que dessa composição de merda e lama
Não se depreende instância ou parcela
Aparte doutras parcelas ou instâncias.

De pé, na frente disso tudo,
Se quero ir, por que não vou?
Este inclinar-se e deter-se freudiano,
É, diga-se, querer dormir e ser insone!

Existir é-me um dever arbitrariamente atribuído.
Esse, diferente de males que se seguem,
É um mal que não cessa.
É uma cama de desconsolos
Como o leito constante e sem descanso de um doente.
Está claro que devo morrer.
É esta dor plástica que padeço,
O sofrer ingrato e sem critério,
O estado de vácuo sem anódinos possíveis
E as dúvidas e as urgências e o relógio:
Tudo isso me transtorna,
Tudo isso é para a minha alma como um porrete nas costelas...

De colapso sob o peso dos dias
(Inerte e melindroso de colapso sob o peso dos dias),
Estou. Sou um rato, positivamente.
Contradito, contrumanizado.
Sim, como mais um rato entre todos os ratos do mundo,
Sob o chão que todos os pés do mundo pisam, desapiedados.
Pesa-me o cérebro na cabeça,
Pesa-me a consciência no crânio da alma.
No coração, de forma muito própria,
Com um caráter muito único,
Tudo murcha e fenece
E se me esvai feito fumaça
Entre os dedos apertados, relutantes.

Se me distraio da minha própria dor,
Por conta de qualquer lapso de entorpecimento,
Sou como o afogado que emerge pra então afundar de novo.

Sinto-me a casca dalguma coisa,
Dalguma essência passadiça.

Vou-me cantando a canção.
Perder-se nela é estar completamente tenso.
Fujo. Sou louco, irremediavelmente.
Tranquei-me dentro de mim
E arrebentei a chave
E é isso.
Meus gritos são reflexos involuntários, reações naturais à dor, não um pedido de socorro.
Se há neles qualquer intenção, quero que olhem, não quero ser salvo.
Quem há ou haveria de devolver-me a alma?

Preso às aldravas da consciência
(Inerte e melindroso, preso às aldravas da consciência),
Valho-me de quê?
A realidade desola:
O homem é só o homem,
Deus é só Deus.
Sinto-me sujo,
Como se sentisse sempre aquele auto-desprezo pós-masturbatório, ou reflexivo.
É como se os cigarros dos outros amargassem a minha língua.
Partir! Partir é a resposta!
Vai-se o prazer, saciam-se as necessidades imediatas
E fica a sujeira sobre a cama
E ainda a sujeira dentro de mim
E sobre a mente, e sobre a pele e sobre tudo...

Se, contudo, há bastantes lágrimas, ainda,
Que possam ser arrancadas como se espreme uma laranja
E com que lavar meus lábios,
Se há bastantes vômitos
Para ruminar entre sensíveis idas ao banheiro
Por respeito do que nunca saberão, porque eis que não importa,
E se estou eu ainda agrilhoado a tal destino,
Estou aqui, resignado.
Não tenho forças o suficiente
Pra ficar de cama e sofrer-me indiferente ao mundo.
Sou mais como o barquinho que nem afunda nem ousa cortar os ventos,
Mas se dobra a eles e se deixa arrastar à deriva pelas águas.

Realizo minha serventia cotidiana
E sou igual.
Como todos os outros, movo o maquinário das coisas
E revolvo com elas.
Acordo em queda-livre das minhas quimeras
— E, ah, como o meu corpo procura o abraço das calçadas movimentadas! —

Os delírios da vida são como os delírios de uma paixão à distância,
Por natureza verídica.
Batam com força no meu rosto,
Verão se desperto desta... deste... orgasmo ao contrário,
Deste nojo pungente e agudo de mim mesmo.
Verão que é o que faço,
Sonho em não acordar — mas que bobagem! —

Se pudesse dormir e dormir e dormir...
E dormir e dormir e dormir e dormir e dormir, sem curiosidades,
Sem o horizonte sempre ao infinito menos um passo.
Pois sinto que caminho para o nada.
Sinto que caminho para o caminho; e todos seguem e não chegam nunca,
Invariavelmente diligentes e insuportáveis.
Sinto que estou dessensibilizado para as coisas boas.
E que injustiça, a dor!
Real como um câncer incipiente mas diagnosticado,
Desejoso de que a inconsciência seja a derradeira revelação a vir com a morte.
A partida, sim!, a que se atende!

Mas dou pra trás, sempre.
Sempre há algo dormente no meio de mim, que não é meu, nem sei o que é.
Sinto-me como um feto abortado,
Temo que o eu inteiro a que me quero restituir
Não passe de uma mentira do meu factual eu-pela-metade!
Sinto-me ao avesso.
Minha cabeça tão cheia de pensamentos
(E eles uivam feito uma ventania, feito uma multidão em fúria),
E minha alma tão vazia
Que minhas asseverações intelectuais escorrem pelo meu espírito abaixo
E o contaminam de humanidade e desilusão
Feito uma cólera, uma doença.

Invento passatempos, proponho paliativos,
Mas canso. Desisto.
Contento-me em gemer, sem vontade,
De forma a satisfazer os ouvidos dentro e fora da minha intimidade.
No fim, creio que seja isso:
Trepem, irmãs, trepem bastante.
E ao que quer morrer, deixem morrer um suicídio sem cartas,
Que a escala não tem razão, nem a viagem.

Fora que há muito mais que isto,
Muito mais que o resto, ou tudo, e está sempre tudo muito bom,
Mesmo esta merda de poema.


(BRAGA NETO)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Aquela história... (parte 2)



“But the expression of a well-made man appears not only in his face,
It is in his limbs and joints also, it is curiously in the joints of his hips and wrists,
It is in his walk, the carriage of his neck, the flex of his waist and knees, dress does not hide him,
The strong sweet quality he has strikes through the cotton and broadcloth,
To see him pass conveys as much as the best poem, perhaps more,
You linger to see his back, and the back of his neck and shoulder-side.”

WALT WHITMAN, ‘I Sing the Body Electric

              Primeiro de tudo, prometo que no próximo post a gente vai ter uma epígrafe em português. É que não imaginei algo que descrevesse melhor o meu êxtase, o meu transe no concernente ao já familiar rapaz do começo desta história do que este excerto do poeta americano, meu querido Walt. Eu estava tantalizado pelo corpo do homem. Eu me demorava olhando pra ele. Permitia-me fazer cara de idiota – pois, sim, quando um homem está perplexo, o certo, aconselha E. A. Poe, é que fique carrancudo. Do contrário, pode estar certo de que estará fazendo cara de idiota.
            O homem ficou lá, olhando pro mar, naquela orla sombria. E não convém chamá-lo mais rapaz. Acontece que o rapaz tinha trinta anos, fiquei sabendo depois.
Eu disse na semana passada que não me dei conta, pelo menos não no momento, de que ele estava inclinado, sim, a ceder. Pelo menos era o que eu tinha instrumento pra descobrir na hora. Em outras palavras, eu mandei a real pra ele e ele nem me porrou, nem foi embora. Mais tarde, é claro, ficou perceptível que “ceder” não era bem a palavra e que, no final, o gostosão tinha até tesão em mim.
            Dito isso, ele se aproximou de mim. “Você tá com o pó aí, ainda?” Ele parecia muito alterado. Estava completamente fora de si. Olhava pra um lado e pro outro com uma frequência agoniante. De tempo em tempo, ele apontava pra silhueta de alguma folha ou galho e perguntava se não era uma pessoa espiando. Não que isso fosse culpa só do pó. Houve um momento (e eu nem havia cheirado nada, ainda) em que confundi um monte de tijolos atrás de um barco, debaixo de uma amendoeira, com um casal se pegando. Mesmo assim, o carinha estava um lixo de paranoico. A minha resposta à sua pergunta foi sim, eu tinha pó, ainda, e ele se aproximou ainda mais. Fomos para debaixo de outra árvore, onde havia um toquinho serrado onde eu podia sentar. Pedi pra ele abrir as calças. Ele estava muito relutante, um saco... Eu começava a me arrepender dos cinquenta reais que já tinha gastado com a mercadoria. Aquilo era como o queijo da ratoeira: não se come, se bota veneno. Em outras palavras, ele não aceitasse a minha proposta, eu, quando muito, daria aquilo pra um amigo; isso se não jogasse tudo fora.
            Ele se afastou de novo. Eu estava cansado e a última coisa que eu precisava era ser tolhido pela glicose anal de um estranho. Fiquei puto, levantei e caminhei na direção da rua, tentando não olhar pra trás. Aí das duas uma: ou ele cagou pra mim, ou fingiu que cagou, porque não saiu de onde estava. Me deixou ir, o infeliz. Não sou a pessoa mais pretenciosa do mundo, mas essa era a última coisa que eu esperava. Sua inação me pegou de surpresa. O que eu ia fazer, então? Fazia parte do meu projeto que ele me detivesse. Fiz algo, nesse caso, que eu odeio fazer. Parei, dei meia volta e fui na direção dele. “Você tem certeza?
            Digo isso não sem um mínimo de constrangimento, embora todo mundo pague pau de vez em quando, hipocrisias à parte. Fora que ele era uma excelente peça.
            O importante é que sua postura mudou. De repente ele parecia mais disposto a fazer umas brincadeirinhas. E eu comia com os olhos aquela composição espetacular de músculos, tendões e cabelos. O jeito que o aspecto do pescoço mudava quando ele olhava pro lado, as juntas dos braços com os antebraços, cada fissura, saliência... Aquela sombra reminiscente duma barba aparentemente bem cheia, sem falhas. Ele era, sem dúvida, um homem bem-constituído e de porte. Eu, a essa altura, estava sentado no banquinho de toco e estávamos próximos o suficiente pra que eu começasse as carícias, as carícias mais íntimas possíveis. Por isso eu acho curioso quando o Whitman diz que a alma é o corpo. A profundidade que um toque pode alcançar no âmago do seu ser é indizível. Com que propriedade negar que, enquanto eu tocava seu corpo, não tocava também a sua alma?
            O calor do momento, entretanto, obstava tais devaneios. Ele tirou a camisa enquanto eu o felava. A diversão, contudo, durou pouco. Qualquer mariposa passando debaixo de poste era suficiente para assustá-lo, para tirá-lo do lugar e fazê-lo esgueirar-se pra ir dar uma olhada.
             Cansei e nos despedimos. Ele se vestiu e fomos caminhando para a rua, onde ele pegaria um caminho e eu outro. Dei-lhe toda a cocaína que estava comigo. Aquilo, afinal, não me interessava.
            A noite já começava a dar sinais de que estava chegando ao fim. Um homem de short e tênis parecia estar saindo pra caminhar e nós na balbúrdia, pro dia nascer feliz. O meu gostosinho me convidou pra ir à casa dele. Vocês deveriam é estar lá pra ver a cara de nojo que eu comecei a fazer, mas, para fins pragmáticos, conveio que dissesse apenas não. Eu mal o conhecia. Foi quando ele disse que ele poderia ir na mesma direção que eu. Pra lá também tinha ônibus, ele dizia.
            A verdade é que (termino de contar isso no outro post) a gente terminou a noite num motel no Rinque. Foi uma maravilha.

[continua]

domingo, 13 de maio de 2012

Aquela história... (parte 1)



“I know, no one’s going to show me everything – we all come and go unknown.”
JONI MITCHELL


O álcool nos livra, geralmente, de certas inibições e nos faz dar vazão a certas espontaneidades. As minhas, particularmente, tendem à inércia e ao resguardo. Costumo ir me afastando do centro dos acontecimentos e me retirar pra periferia das eventualidades. Sujeito-me à sorte, fumo o meu cigarrinho, bebo a minha cerveja; minha liturgia noturna é tomar a minha mamadeira e esperar pra ser o guardanapo que se come quando o bolo acaba. Você que lê isto, pode me achar estúpido...

O quê? Está esperando que eu me justifique? Você, que lê isto, pode me achar estúpido. Sinta-se à vontade. Nada mais verdade na minha vida que é a mesma shakespeariana "que se arrasta nesta passada mesquinha dia após dia”, só que sem conversar com caveiras sobre temas ontológicos. Que seja, há ainda um pouco do meu som e da minha fúria a se narrar neste post.

Se me perguntarem se estava atento, se tomei nota dos acontecimentos à minha volta, direi que não. Eventualmente, direi que sim e estarei mentindo. Uneventful, numa hora destas, é uma boa palavra que falta na língua portuguesa. Lá pras duas horas, já havia passado por vários rostos conhecidos, várias latinhas, vários cigarros e nada, nada, nada era digno de registro. Nada, oras, porque eu não fazia ideia de que um certo metro e oitenta de carne ainda me faria fremir delirantemente num motelzinho barato do Rinque. Já mais pra lá que pra cá, rodando pelo campus da UFF – eu mencionei o fato de que estava numa chopada no Gragoatá? Tanto faz... – à procura de uma trepada, mirei um mancebo no meio de uma galera bonita. Estavam fumando maconha. Ele era alto, de cabelo cortado a máquina, com cara de mal. Tenho experiência com o tipo.

Posso dar um dois com vocês?”, perguntei. Não, vocês não fazem ideia de como imponho resistência ao uso dessas gírias horrendas, mas foi por motivo de força maior.

Sem esboçar um sorriso que fosse (faz parte, creio, do protocolo de macho), o rapaz, precisamente o que eu avistara e que havia despertado o meu interesse, me passou o cigarro. Fez com a cabeça algo que interpretei como “não precisa se preocupar”, “quê isso”, ou outra coisa que pode ter passado batida.

Um jovem intelectual, delicado, como eu... Fui invadido por um receio desconcertante. Já tinha estado lá antes, digo, com rapazes grandes e ameaçadores como aqueles, a situação não me era estranha em absoluto. Mas com todas as minhas digressões e floreios, não chegaremos lá nunca.

Dava umas olhadas nele. Aquela barba cerradinha, aquele jeito de quem ia me bater se eu lhe fizesse uma proposta invasiva, tudo era atraente. Terrível e atraente. Quis afastá-lo do grupo e me ocorreu, após uma atendida mais circunspecta aos trejeitos do homem, que ele era achegado a certos hábitos que eu abandonara havia cerca de um ano. Ele usava cocaína e isso estava escrito claramente na testa dele. Estava sob o efeito da droga naquele mesmo instante e isso era um detalhe que eu, justamente eu, não deixaria passar.

E aí, onde eu arranjo pó por aqui?”, perguntei a ele. Pela cara que ele fez, deu pra ver que eu tinha acertado em cheio no alvo. Ele se mexeu logo, saiu de perto dos amigos, me olhou de cima a baixo e pensou em tirar vantagem de mim. E digo isso com certeza absoluta. Fazia parte do meu plano. Ele viu que eu tinha dinheiro, que estava a fim de comprar pó e ele ia ficar com as rebarbas das minhas trilhas. Maquiavélico que sou.

Ele fez uma ligação, disse que o “mané”, fosse lá quem fosse esse tal mané, estava lá perto. Virou as costas e caminhou pra saída do campus, de uma maneira fortuita que me pareceu que ia sair sem mim. Mas não nesta vida! Fui atrás dele, naturalmente, e pulando toda a questão da logística de se conseguir cocaína na Cantareira, o que sem dúvida renderia um texto prolífero (e prolixo, como tudo que eu escrevo), com a mercadoria em mãos, ele se despediu. Disse que estava cansado e tinha que fazer sabe-se lá o que de manhã.

Mas não vai querer dar um teco?”, perguntei. Era o ponto fraco dele.

Olhando de mais perto, o rapaz com a maior cara de hétero era bem tímido. Ele inclusive se recusou a cheirar lá onde estávamos, para a minha satisfação. Ele queria a cocaína. Fomos caminhando para a orla do Gragoatá, de frente pro Convés. Estando finalmente sozinhos, fui incisivo: a sua apropriação e uso da “mercadoria” estava impreterivelmente acondicionada à sua aceitação de um singelo boquete. Sim, de novo, sou nojento, sou reles etc. etc. etc.

Sua reação não poderia ser mais broxante – Não sou viado, não, porra! – e se afastou, caminhando pela praia. Era alta madrugada; a noite estava quente e não me lembro se havia estrelas. Lembro que dava pra distinguir uma luazinha no céu. Mas havia outra luz além da lua. Ele se afastou pra direção oposta à rua. Ora, ele ficou lá, olhando para o mar, mas não foi embora. Isso só se me mostra interessante agora, olhando em retrospecto, e me arranca uma risadinha de vanglória. Ele ficou lá.

[continua]