Há uma
cisão crucial entre narrar e viver. Sob a peculiar perspectiva de quem escreve
e não de quem vive, pude revisitar a ocasião que se seguiu a minha penúltima postagem
e ressignificá-la de todo. Há um bom e velho filósofo francês que trata dessa
diferença e de como o significado das nossas memórias é construído de trás para
frente, ou seja, de como, tendo já vivido um caos circunstancial de eventos
incoesos, gratuitos – nem sei se cabe a palavra evento; a meu ver, eventos são
apenas recortes ilógicos da realidade a que atribuímos um sentido específico –,
amarramos fatos a fatos numa sequência que se permita compreender em termos de racionalidade e que, ainda, teria nos trazido à situação presente. Cada fato passa a ter a importância de ter contribuído para que a vida fosse
como é. Desse modo, voilà!, os assim
chamados episódios da vida de repente fazem sentido. Uma artimanha, segundo
(permitam-me que me corrija) uma personagem
do tal filósofo. Essa é uma espécie de encadeamento reverso, uma reconstituição
do nexo causal de trás para frente, a partir de um fato considerado relevante.
Nem ia falar disso, acontece que me desviei do foco.
Regardless, se comecei, não custa
continuar. A disparidade entre narrar e viver, eu ia dizendo, consiste em não
começarmos do começo. Se por acaso começo a dizer que ia encontrar uns amigos
na Praça Zé Garoto e que a noite não anunciava nada, vocês, sim, vocês
leitores, já se encontram inundados pela iminência de um evento extraordinário.
Todo fato relatado só tem relevância enquanto um degrau que leva à
concretização desse evento. Isso na narração. Quando se vive, entretanto, não
há essa compleição definida de prenúncios. Quando se narra, mesmo quando se atém
estritamente aos fatos [palavra perigosa, essa...], cuidando em ser objetivo, a
própria seleção do que narrar deforma a realidade, viola sua própria condição de realidade. Daí muitos
negarem que seja possível narrar histórias
verdadeiras.
Sim, eu
ia encontrar os amigos, mas era só isso? Foi o que eu apreendi. Nem sequer
isso, nem sequer o apreendido é forçosamente o verdadeiro. Os próprios fatos
persistem na minha memória em função do que veio depois, ou melhor, quem veio depois.
Recebera
um telefonema alguns minutos antes. “Sim,
claro que posso. Estou indo para aí.”
Meses
antes, encontrei-me perdidamente apaixonado. Apaixonado? É, vamos deixar assim.
Eu disse no começo desta história que eu estava trabalhando num posto de
gasolina. M. aparecia lá às vezes. Que sorriso cativante! Ele abastecia o
carro, comprava uma cerveja, me cumprimentava e saía. Seu aspecto desleixado
era outra coisa encantadora a seu respeito. Ele era meio grunge, andava com jeans rasgados, roupas largas, com a
samba-canção à mostra. A maneira como ele fazia estremecer cada fibra do meu
corpo é um desses tais mistérios entre o Céu e a Terra que a nossa vã filosofia
ignora. Era bonito? Sim, mas não era para tanto. Decerto há homens mais belos
no mundo, então por que demônios ele me atraía dessa maneira? Eu fazia esforços
para permanecer impassível cuja natureza escapa ao relato e ao meu próprio
entendimento. Os dias, a partir duma manhã sem nome, já nasciam e morriam em
nome da minha obsessão. De repente, não mais que de repente, eu ia trabalhar
para o ver. O auge do meu dia, eu sabia desde cedo, seria atendê-lo com um
sorriso reativo ao seu, sem excluir toda a circunspecção para não sorrir demais.
Uma vez,
não sei o que denunciou meu vício, ele me chamou para um canto e cheiramos pó à
paulista. Na época não havia câmeras no posto. Foi o primeiro momento que
dividimos, a trivialidade de se cheirar um pozinho com um amigo!
Chega de
rodeios! E vou escrevendo e me perco nos preâmbulos da minha própria linguagem
e reflexões. Eu caminhava para o ponto de ônibus. Destino? Praça Zé Garoto! Ia
encontrar os amigos para conversar, quem sabe fumar alguma coisa.
O mundo
encolheu, sem mais nem menos. Uma agonia estranha me sobe pela coluna como um
espasmo e eu balanço a cabeça. Um carro branco para ao meu lado e abaixa a
janela: era M.
“Tá indo pra onde, meu querido?” Ah, M.,
para qualquer lugar! Para onde você
está indo? Take me
anywhere, I don’t care, I don’t care, I don’t care!
“São Gonçalo”, eu respondi. Ele disse
para eu entrar no carro. Obedeci. Sim, obedeci. Creio que seja essa a palavra. Sentei
no banco do carona, olhando em volta do carrinho novo do doce amigo da minha
família. Fui tomado por uma emoção inédita. Uma agonia, creio. Não, não uma
agonia. Creio que me senti como um filhote de cachorro quando o pegam na mão e
ele treme. Estava feliz, contudo. Era um misto de felicidade e esse sentimento
de cachorro. Como? Que meios eu tenho de saber como se sente um cachorrinho? Um
conselho: fiquem com essa descrição, que está ótima para a cara de vocês!
Cumprimentamo-nos,
como se estivéssemos realmente interessados em saber como ia a mãe do outro. M.
ao volante é a pessoa mais sexy do mundo. Mão direita ao volante, mão esquerda
com o cigarro, um sorriso lindo e aqueles braços lindos. Um David de
Michelangelo esculpido em carne por um artista pós-moderno, sem caretices. Cada
veia aflorando naqueles braços, sob aquela penugem delicadamente viril era
digna duma ode dum García Lorca da vida. Quis assumir esse papel. Eu mesmo
escrevi cem mil versos para ele.
“Onde em São Gonçalo?”, perguntou. Respondi,
entre mil “se não for te atrapalhar”, “por favor, não quero ser um incômodo” e
todas essas formalidades. “Quê isso...”,
ele dizia, “A gente só vai passar num
lugarzinho antes”.
Nenhum
assunto digno das mais baixas conversações passava pela minha cabeça, nem mesmo
remotamente. Ficava sentado, olhando para o meu All Star preto. Estava
extremamente desconfortável com o silêncio e, ainda assim, gostaria de impedir
os instantes de se aniquilarem. Gostaria de reter os momentos.
Ele
dobrou à direita. Eu sabia para onde ele estava indo. Ia comprar drogas e foi o
que fizemos. É neste ponto que esta história vira um pornô estadunidense mal escrito.
Ele saiu do carro para urinar e a minha mente decolou. Tudo fazia parte duma
certa mágica vulgar e decadente. Que música se seguiu! O zíper abrindo, o roçar
sutil do seu pênis na cueca, o elástico chicoteando voluptuosamente sua pele e
então a urina batendo com força no chão, transbordando em masculinidade. Meu coração
palpitava. Sentia um pulsar ritmado nas têmporas, enquanto olhava para ele. Ele
estava de costas, segurava o pênis de maneira que me era quase táctil e me
fazia olhar para as minhas próprias mãos. Ele deu uma olhadela para trás e eu
disfarcei, envergonhado. Que bundinha perfeita. Depois das sacudidas básicas,
ele voltou para o carro e apoiou a cabeça contra o volante. Meus pulmões se encheram do seu cheiro forte de cigarro. Os segundos se
arrastaram por uma eternidade. Que incômodo. Ele viu que eu estava olhando para
ele. M. encontrava-se agora olhando para o chão do carro, a cuca contra o
volante. Foi aí, precisamente, que os clichês pornográficos começaram:
“Vem cá”, ele disse, “você é ativo ou passivo?” A frase
estourou contra o meu peito como um tiro de escopeta. Pensei que ia ter um
ataque cardíaco. Não gastei tempo elaborando frases dignas de serem escritas.
Viver não é narrar:
“O que você quiser que eu seja”, respondi
apenas.
[continua]
Foi ótimo ler a versão escrita dessa história. Nas palavras verbais não tem as sensações. Genial! Espero ansiosamente pela parte 3.
ResponderEliminarA versátil hein ! :D
ResponderEliminarCorajoso em encarar essa fumaceira...
estou ficando dependente das suas histórias!
ResponderEliminarestou ficando dependente das suas histórias!
ResponderEliminareeeeeeeeeeita!
ResponderEliminarOh MY GOD... O que dizer dessa postagem? Cara você consegue ficar mais foda a cada dia, meu Deus... Se ultima postagem me decepcionou (não por ser ruim, mas se tratando de alguém como eu, que acompanhei esta história de perto, confesso que esperava mais), esta superou todas as minhas expectativas... Fico imaginando como serão as próximas... Tá, chega de rasgar seda... Adorei a postagem, conseguiu ser mais emocionante do que seu próprio relato a mim na época do ocorrido... rsrsrs
ResponderEliminarEnfim, que venham as próximas... ;)
Beijos, putinha do posto! hauahauaha... até!
Caraca jurava ter comentado, mas enfim .... Suas vivências têm muito à ver com a cuca do Bratz, mas nunca experenciei com toda esta intensidade. Fantástico, intenso, forte. Sua forma de decodificar em palavras suas emoções é incrivelmente bela. Como disseram, tornei-me dependente de suas pastagens.
ResponderEliminarBjão
Obrigado, Bratz.
Eliminar;)