terça-feira, 22 de maio de 2012

Poema reflexivo sobre a auto-extinção



Sei que vocês devem estar esperando a continuação da história das duas postagens anteriores, mas isso deve vir lá pro final desta semana. Enquanto isso, este é um poema que eu escrevi há cerca duns dois anos. Há de se perceber que eu estava numa atmosfera, enfim, não das melhores. Mas o que seria da arte sem o sofrimento, né mesmo?


Estou cansado e não me há cama.
Prostrado, um corpo pesado do pó da estrada
Sobre um par de pés ressecados
Os quais vagueiam andantes sobre uma vereda mui absurda,
Dum absurdo tamanho,
Que dessa composição de merda e lama
Não se depreende instância ou parcela
Aparte doutras parcelas ou instâncias.

De pé, na frente disso tudo,
Se quero ir, por que não vou?
Este inclinar-se e deter-se freudiano,
É, diga-se, querer dormir e ser insone!

Existir é-me um dever arbitrariamente atribuído.
Esse, diferente de males que se seguem,
É um mal que não cessa.
É uma cama de desconsolos
Como o leito constante e sem descanso de um doente.
Está claro que devo morrer.
É esta dor plástica que padeço,
O sofrer ingrato e sem critério,
O estado de vácuo sem anódinos possíveis
E as dúvidas e as urgências e o relógio:
Tudo isso me transtorna,
Tudo isso é para a minha alma como um porrete nas costelas...

De colapso sob o peso dos dias
(Inerte e melindroso de colapso sob o peso dos dias),
Estou. Sou um rato, positivamente.
Contradito, contrumanizado.
Sim, como mais um rato entre todos os ratos do mundo,
Sob o chão que todos os pés do mundo pisam, desapiedados.
Pesa-me o cérebro na cabeça,
Pesa-me a consciência no crânio da alma.
No coração, de forma muito própria,
Com um caráter muito único,
Tudo murcha e fenece
E se me esvai feito fumaça
Entre os dedos apertados, relutantes.

Se me distraio da minha própria dor,
Por conta de qualquer lapso de entorpecimento,
Sou como o afogado que emerge pra então afundar de novo.

Sinto-me a casca dalguma coisa,
Dalguma essência passadiça.

Vou-me cantando a canção.
Perder-se nela é estar completamente tenso.
Fujo. Sou louco, irremediavelmente.
Tranquei-me dentro de mim
E arrebentei a chave
E é isso.
Meus gritos são reflexos involuntários, reações naturais à dor, não um pedido de socorro.
Se há neles qualquer intenção, quero que olhem, não quero ser salvo.
Quem há ou haveria de devolver-me a alma?

Preso às aldravas da consciência
(Inerte e melindroso, preso às aldravas da consciência),
Valho-me de quê?
A realidade desola:
O homem é só o homem,
Deus é só Deus.
Sinto-me sujo,
Como se sentisse sempre aquele auto-desprezo pós-masturbatório, ou reflexivo.
É como se os cigarros dos outros amargassem a minha língua.
Partir! Partir é a resposta!
Vai-se o prazer, saciam-se as necessidades imediatas
E fica a sujeira sobre a cama
E ainda a sujeira dentro de mim
E sobre a mente, e sobre a pele e sobre tudo...

Se, contudo, há bastantes lágrimas, ainda,
Que possam ser arrancadas como se espreme uma laranja
E com que lavar meus lábios,
Se há bastantes vômitos
Para ruminar entre sensíveis idas ao banheiro
Por respeito do que nunca saberão, porque eis que não importa,
E se estou eu ainda agrilhoado a tal destino,
Estou aqui, resignado.
Não tenho forças o suficiente
Pra ficar de cama e sofrer-me indiferente ao mundo.
Sou mais como o barquinho que nem afunda nem ousa cortar os ventos,
Mas se dobra a eles e se deixa arrastar à deriva pelas águas.

Realizo minha serventia cotidiana
E sou igual.
Como todos os outros, movo o maquinário das coisas
E revolvo com elas.
Acordo em queda-livre das minhas quimeras
— E, ah, como o meu corpo procura o abraço das calçadas movimentadas! —

Os delírios da vida são como os delírios de uma paixão à distância,
Por natureza verídica.
Batam com força no meu rosto,
Verão se desperto desta... deste... orgasmo ao contrário,
Deste nojo pungente e agudo de mim mesmo.
Verão que é o que faço,
Sonho em não acordar — mas que bobagem! —

Se pudesse dormir e dormir e dormir...
E dormir e dormir e dormir e dormir e dormir, sem curiosidades,
Sem o horizonte sempre ao infinito menos um passo.
Pois sinto que caminho para o nada.
Sinto que caminho para o caminho; e todos seguem e não chegam nunca,
Invariavelmente diligentes e insuportáveis.
Sinto que estou dessensibilizado para as coisas boas.
E que injustiça, a dor!
Real como um câncer incipiente mas diagnosticado,
Desejoso de que a inconsciência seja a derradeira revelação a vir com a morte.
A partida, sim!, a que se atende!

Mas dou pra trás, sempre.
Sempre há algo dormente no meio de mim, que não é meu, nem sei o que é.
Sinto-me como um feto abortado,
Temo que o eu inteiro a que me quero restituir
Não passe de uma mentira do meu factual eu-pela-metade!
Sinto-me ao avesso.
Minha cabeça tão cheia de pensamentos
(E eles uivam feito uma ventania, feito uma multidão em fúria),
E minha alma tão vazia
Que minhas asseverações intelectuais escorrem pelo meu espírito abaixo
E o contaminam de humanidade e desilusão
Feito uma cólera, uma doença.

Invento passatempos, proponho paliativos,
Mas canso. Desisto.
Contento-me em gemer, sem vontade,
De forma a satisfazer os ouvidos dentro e fora da minha intimidade.
No fim, creio que seja isso:
Trepem, irmãs, trepem bastante.
E ao que quer morrer, deixem morrer um suicídio sem cartas,
Que a escala não tem razão, nem a viagem.

Fora que há muito mais que isto,
Muito mais que o resto, ou tudo, e está sempre tudo muito bom,
Mesmo esta merda de poema.


(BRAGA NETO)

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