quarta-feira, 3 de outubro de 2012

I'm Back!

Eu, brindando aos meus 21 anos

Bebi alguma coisa e resolvi dar cabo desse hiato criativo. Nada como um revigorante chá de folha de coca vindo direto de Cusco, no Peru, que um amigo trouxe para mim este fim de semana. Foi meu aniversário, essa sexta. A bem da verdade, eu vinha andando deprê demais para escrever qualquer coisa. Que teria feito? Fumado um cigarro na sacada do Bay Market e observado os pombos em busca de inspiração? De certo, as bichas indo e voltando teriam sido matéria-prima dalguma crônica sobre a liturgia do rendez-vous nos banheiros públicos, e de como saem uns após uns, de intervalo em intervalo, o que é protocolar desses encontros furtivos, e, como que para se chacoalhar de sua austeridade constrangida, tomam uma casquinha no quiosque do McDonald’s... Mas, ah, tenha dó!...
Vou é parafrasear Garrett e dizer que o teclado do meu laptop é mais cobiçoso. E como Viagens na minha terra não é lá bem um best-seller, talvez a referência ecoe vazia em meia dúzia de crânios.
Enfim, vamos pôr as fofocas em dia. Li uma dezena de livros, caminhei sozinho na mata com fones no ouvido, sentindo o estalo dos gravetos no chão, catando folhas no cabelo, suado, assoviando. Mantive um überlongo jejum sexual, abstive-me do fumo e da bebida (tá, nem tanto)... Foram meses benfazejos!
Benfazejos sim, mas como este blog é casto como os lençóis de um prostíbulo, será outra a minha matéria. É dum relato em terceira, quarta mão.

I

Há essa tal casa abandonada em... Trata-se duma casa velha, muito espaçosa, muito antiga. Diz-se ter pertencido a certo... O assoalho de madeira, lustres, parte do encanamento, uns bustos aqui e acolá, a maior parte das portas e janelas foram subtraídos da edificação, de forma que os compartimentos se comunicam livremente através de aberturas disformes e as reminiscências assim dispostas congregam-se num aspecto de arcabouço. Em certos cômodos a estrutura cedeu duma maneira tal que as paredes ameaçam precipitar-se inteiras sobre o chão, agora desguarnecido; em toda parte observam-se os efeitos do abandono remoto, e o ar tristonho e miserável do prédio vê-se até na vegetação hirta e ebúrnea que se lhe entranha por entre as gretas. São muros altos, eivados de infiltrações; o revestimento se desprende sozinho da parede, e desnuda em alguns pontos a alvenaria maciça de barro cozido. No vão entre os dois braços do muro, há um portão enorme, pesado, encanecido de ferrugem, que serve de acesso à velha residência. Passa-se pelos portões e se caminha cerca de vinte minutos até o domicílio, ou carcaça do domicílio do caseiro por um logradouro estreito. O caminho foi invadido em alguns pontos pela grama e pelas daninhas, muito altas. Depois de cerca de mais dez a quinze minutos, chega-se ao casarão em ruína.
É uma construção isolada. A vegetação circunstante densa e supina, de forma que, dando-se às costas qualquer fachada, tem-se a impressão de que por quilômetros e mais quilômetros não há nada em volta além de gramíneas e arvoredos.
Muito já se fez para impedir os absurdos que tomam lugar entre suas paredes, que serão objeto destes breves capítulos; nada parece ter surtido efeito, entretanto. Amiúde bloquearam as entradas, por vezes pregando tábuas, por vezes fechando tudo com tijolos, e passaram correntes grossas entre as grades do portão. Dias depois estava tudo escancarado outra vez.

II

Nosso amigo foi deitar-se, nu como de costume, os óculos ainda na cara. Reparava para suas mãos, os pelinhos nas falanges, os nós dos dedos. Via o abdome cavado entre as costelas, o membro serenado, de esguelha, o prepúcio abotoado como uma gêmula. Dormiu, e acordou de manhã.
A língua esbranquiçada, o paladar acerbo na boca; escovou os dentes mirando sua própria fronte no espelho: os óculos, os cravos no nariz, o rosto fino, os cabelos escuros; uns pontinhos pretos debaixo das ventas e na ponta do queixo, rudimentos de barba que ele tirava dia sim, dia não; um tufo de pelos no meio do tórax e em volta dos mamilos. Lavou o suor do corpo e se secou com a toalha velha, manchada de água sanitária. Pôs a cueca no cesto de roupa suja e desceu para tomar café.
Enquanto mastigava sua broa de milho, sentia pulsar a região meridional à recordação dum ânus rosado, incomumente aberto, liso, uma planta carnívora, e a parede a sua frente desbotava, sua boca semiabria-se e um espasmo fez fremir sua cabeça por sobre os ombros.
O dia se arrastou e a cada hora que se sucedia, havia a impressão de que um Aquiles se aproximava mais e mais duma tartaruga sem que jamais a alcançasse. Mas se o tempo não é dado a favores, tampouco se ocupa de pôr empecilhos ao que se passa por estas bandas. E assim, em sua décima milésima consulta ao relógio, era hora de ir.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Sumido

Eu sei que estou sumido, mas voltarei em breve. Estou ocupadíssimo com as minhas leituras (tenho lido cerca de dois livros (enormes) por semana), e mal posso esperar para diverti-los com os meus escritos, se é que eles se prestam a divertir. Eu sou assim, não escrevo por obrigação: espero a vontade chegar. Agora estou leitor, em alguns dias volto a escrever.

Abraço para todos os queridos leitores.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Sensação espasmódica


ah, onda como um espasmo freático! arrancando gozo dos meus lombos e incômodo no meu períneo.
frêmito este à cintura dos mamilos rijos e rosados que querem se encher de leite e não podem...
quem me dera verter um rio de humores corporais como uma mamífera gorda e prenhe
e que as minhas tetas doessem e inchassem, sanguíneas e purulentas
ah, a aleitar dum leite rosé e agridoce garotos brancos e impúberes e tocar seus membros minúsculos lascivamente como uma mãe ou um pai...

(aquele João que por hora entretém-se com o laptop no segundo andar desse prédio beira-orla de Icaraí e que vejo da janela do ônibus servia para esse fim...)

ah, e esses que trazem sempre umas porras duns fones grudados às orelhas
e se exercitam nos aparelhos dispostos no calçamento
com seus pelos que mal adolescem...
...ir por eles através como a música que os embala...
uma alma convertida em dados numéricos que corre nos fios como o sangue corre nas veias, e acalora os músculos, e faz fricção das cartilagens entre osso e osso...
os que correm nos passeios, suados, com shorts curtos
cujas pirocas se sobressaltam tresloucadas
na dinâmica motora
da sua atividade

terça-feira, 26 de junho de 2012

O caso de M. (parte 3)


“What she asked of me at the end of the day, Caligula would have blushed.”
 – Heaven Knows I’m Miserable Now, The Smiths

Um sorrisinho consensual, brotando-se da flor da minha inocência, quando olhei pela janela do carro lá para fora, para a paisagem cinética duma pobreza sem comoção, e esperei – interpretar os meus silêncios não é lá uma tarefa hercúlea e, jacente no banco do carona, eu era todo uma deixa para quaisquer pedidos obscenos.
            As casinhas... Quantas vezes, na minha solidão, não olhei pela janela do ônibus a imaginar as vidas sabe-se lá se venturosas atrás dessas portas?... Por vezes introspectivo, por vezes projetando a introspecção nos outros. Ora, que sou meio dado a obviedades e a reticências... Há de ser dito que nunca deixei de observar, mesmo sendo um péssimo observador, um superinterpretador por excelência, projetor de mentiras e cônscio disso, atrás dum sorriso diáfano de envergadura enorme. Minutos antes, entrávamos na paisagem (desoladora?...) daquela favelinha para nos abastecermos. Era já razoavelmente tarde, mas uns meninos ainda jogavam bola na rua. Diferente do que geralmente se sucede quando crianças da minha vizinhança jogam bola na rua, esses não pareciam incomodados com a nossa passagem. Como os pombos urbanizados, que não se afastam quando chega gente perto, o carro ia passando devagarinho e o jogo ia se ajustando ao nosso deslocamento, nós inclusive desviando deles como de buracos, até termos passado e podermos voltar à velocidade normal.
Entramos e saímos, até que, e isso eu disse no último post sobre M., ele me perguntou do que era que eu gostava. Eu tinha então dezoito anos, era tímido no tocante a sexo e deixara para ele o encargo das iniciativas. Minha experiência era muito pouca, quase nada; resumia-se a algumas masturbações e uma ocasião ou outra de sexo oral. Minha primeira trepada, se me perdoam o vulgarismo – se não, nem precisam continuar a ler –, foi  uma porcariazinha grotesca, quando, depois dumas insinuações, terminei por dar para um rapaz feio de pau pequeno. Foi rápido e desagradável, dentro de um cubículo de banheiro, e quando ele terminou, gozou dentro de mim e saiu. Corri para o vazo e já sentei cagando; foi horrível. Levantei e admirei, ligeiramente nauseado, as fezes misturadas com sêmen antes de dar descarga. Aliás, tenho várias dessas lembranças escatológicas: beijos ácidos com o gosto emético de cigarro, os fedores sexuais que invadem os ambientes quando se está imundo e se despe, o cheiro do esperma e da genitália mal lavada, o boquete com gosto de mijo, e por aí vai... M., entretanto, não era nada disso. Era um príncipe desencantado, um burguês decadente com ares de majestade, um comandante de centúria romano pronto para me subjugar e fustigar. Meu doce violador que me amaria e repudiaria, como alguém que, tendo levado a comida à boca, dignou-se a engolir, mas não a pedir mais. Hei de conceder, no entanto, que, depois dessa noite, vimo-nos ainda com certa assiduidade ao longo dos meses. Ele cada vez mais desinteressado, naturalmente. Mas ainda não chegamos a esse ponto!
Eu sou o que você quiser que eu seja”, disse. Estávamos no carro e M. se despiu, desvelando a nudez espetacular. Não tive tempo para observações mais minuciosas. Comecei a chupar avidamente aquela piroca linda. Gosto de fazer sexo oral! Prefiro receber, è vero, mas amo fazer. E ele tinha um pênis tão bonito!... Gosto de explorar o membro: o dele, especialmente, era digno duma ópera. Quem sabe A flauta mágica, de Mozart. Chupo a glande, passo a língua em volta dela, no frênulo, vou de cima a baixo, engulo tudo, dou mordicadas no saco etc. etc. etc. Divirto-me como um pinto no lixo.
Paramos algumas vezes para cheirar, no caminho para Piratininga. Sim, Piratininga, o mesmo lugar onde eu ainda teria noites de adrenalina com P., dois, três anos depois, mas já falei disso. Podem caçar as postagens.
            Estou há dias sem escrever. Entediado, desmotivado, infeliz. Vocês, os leitores, devem ter percebido isso por este texto díspar do meu estilo corrente. Relendo tudo, a linguagem se mostra ainda mais decadente do que de costume e falta à naturalidade.  Não irei mais adiante. Reestabelecerei meu ânimo e que venha a parte quatro!

terça-feira, 19 de junho de 2012

Recortado


Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.
(Haicai de Millôr Fernandes)


Passo lá pelas turbas e interesso-me de repente pelo rapaz muito bonito que vem na direção oposta. Que me importa saber quem ele é? É um jovem bonito, parece ser inteligente com a compleição séria que carrega atrás duns óculos exageradamente convencionais; uma mala ao braço direito. Outro virá dizer que não há cara de nada... Mas não hei de deter meu olhar sobre o moço: ele se vai em segundos, como se vão os segundos. Olha outro garoto! Na frente da estação das barcas, passam esses homens bem vestidos, parentes de alguém do escritório e que não significam nada. Eu, que não sou mãe de ninguém, posso os reduzir à espécie de magnetismo que experimento nas órbitas dos olhos. Construo um esboço do que não são, sem o mínimo compromisso, assim como eles são o que são sem o mínimo de compromisso e isso não se tange remotamente que seja.

Uma vez, conversava com um rapaz bonito e burro que não me entediava, mas creio que não prestasse atenção nele depois de cinco minutos; sabe Deus se ele em mim. Não nos ouvíamos, creio: falávamos cada um de si não para o outro. Sorria vagamente para ele enquanto seus lábios abriam e fechavam.

Minha mãe disse que está orando por mim. Ri-me de não estar orando por ela.

Demorei-me nos labirintos de Carroll por cinquenta páginas, até que alguém tirou a camisa e interrompeu minha concentração.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

M. (parte 2)


Há uma cisão crucial entre narrar e viver. Sob a peculiar perspectiva de quem escreve e não de quem vive, pude revisitar a ocasião que se seguiu a minha penúltima postagem e ressignificá-la de todo. Há um bom e velho filósofo francês que trata dessa diferença e de como o significado das nossas memórias é construído de trás para frente, ou seja, de como, tendo já vivido um caos circunstancial de eventos incoesos, gratuitos – nem sei se cabe a palavra evento; a meu ver, eventos são apenas recortes ilógicos da realidade a que atribuímos um sentido específico –, amarramos fatos a fatos numa sequência que se permita compreender em termos de racionalidade e que, ainda, teria nos trazido à situação presente. Cada fato passa a ter a importância de ter contribuído para que a vida fosse como é. Desse modo, voilà!, os assim chamados episódios da vida de repente fazem sentido. Uma artimanha, segundo (permitam-me que me corrija) uma personagem do tal filósofo. Essa é uma espécie de encadeamento reverso, uma reconstituição do nexo causal de trás para frente, a partir de um fato considerado relevante. Nem ia falar disso, acontece que me desviei do foco.
Regardless, se comecei, não custa continuar. A disparidade entre narrar e viver, eu ia dizendo, consiste em não começarmos do começo. Se por acaso começo a dizer que ia encontrar uns amigos na Praça Zé Garoto e que a noite não anunciava nada, vocês, sim, vocês leitores, já se encontram inundados pela iminência de um evento extraordinário. Todo fato relatado só tem relevância enquanto um degrau que leva à concretização desse evento. Isso na narração. Quando se vive, entretanto, não há essa compleição definida de prenúncios. Quando se narra, mesmo quando se atém estritamente aos fatos [palavra perigosa, essa...], cuidando em ser objetivo, a própria seleção do que narrar deforma a realidade, viola sua própria condição de realidade. Daí muitos negarem que seja possível narrar histórias verdadeiras.
Sim, eu ia encontrar os amigos, mas era só isso? Foi o que eu apreendi. Nem sequer isso, nem sequer o apreendido é forçosamente o verdadeiro. Os próprios fatos persistem na minha memória em função do que veio depois, ou melhor, quem veio depois.
Recebera um telefonema alguns minutos antes. “Sim, claro que posso. Estou indo para aí.
Meses antes, encontrei-me perdidamente apaixonado. Apaixonado? É, vamos deixar assim. Eu disse no começo desta história que eu estava trabalhando num posto de gasolina. M. aparecia lá às vezes. Que sorriso cativante! Ele abastecia o carro, comprava uma cerveja, me cumprimentava e saía. Seu aspecto desleixado era outra coisa encantadora a seu respeito. Ele era meio grunge, andava com jeans rasgados, roupas largas, com a samba-canção à mostra. A maneira como ele fazia estremecer cada fibra do meu corpo é um desses tais mistérios entre o Céu e a Terra que a nossa vã filosofia ignora. Era bonito? Sim, mas não era para tanto. Decerto há homens mais belos no mundo, então por que demônios ele me atraía dessa maneira? Eu fazia esforços para permanecer impassível cuja natureza escapa ao relato e ao meu próprio entendimento. Os dias, a partir duma manhã sem nome, já nasciam e morriam em nome da minha obsessão. De repente, não mais que de repente, eu ia trabalhar para o ver. O auge do meu dia, eu sabia desde cedo, seria atendê-lo com um sorriso reativo ao seu, sem excluir toda a circunspecção para não sorrir demais.
Uma vez, não sei o que denunciou meu vício, ele me chamou para um canto e cheiramos pó à paulista. Na época não havia câmeras no posto. Foi o primeiro momento que dividimos, a trivialidade de se cheirar um pozinho com um amigo!
Chega de rodeios! E vou escrevendo e me perco nos preâmbulos da minha própria linguagem e reflexões. Eu caminhava para o ponto de ônibus. Destino? Praça Zé Garoto! Ia encontrar os amigos para conversar, quem sabe fumar alguma coisa.
O mundo encolheu, sem mais nem menos. Uma agonia estranha me sobe pela coluna como um espasmo e eu balanço a cabeça. Um carro branco para ao meu lado e abaixa a janela: era M.
Tá indo pra onde, meu querido?” Ah, M., para qualquer lugar! Para onde você está indo? Take me anywhere, I don’t care, I don’t care, I don’t care!
São Gonçalo”, eu respondi. Ele disse para eu entrar no carro. Obedeci. Sim, obedeci. Creio que seja essa a palavra. Sentei no banco do carona, olhando em volta do carrinho novo do doce amigo da minha família. Fui tomado por uma emoção inédita. Uma agonia, creio. Não, não uma agonia. Creio que me senti como um filhote de cachorro quando o pegam na mão e ele treme. Estava feliz, contudo. Era um misto de felicidade e esse sentimento de cachorro. Como? Que meios eu tenho de saber como se sente um cachorrinho? Um conselho: fiquem com essa descrição, que está ótima para a cara de vocês!
Cumprimentamo-nos, como se estivéssemos realmente interessados em saber como ia a mãe do outro. M. ao volante é a pessoa mais sexy do mundo. Mão direita ao volante, mão esquerda com o cigarro, um sorriso lindo e aqueles braços lindos. Um David de Michelangelo esculpido em carne por um artista pós-moderno, sem caretices. Cada veia aflorando naqueles braços, sob aquela penugem delicadamente viril era digna duma ode dum García Lorca da vida. Quis assumir esse papel. Eu mesmo escrevi cem mil versos para ele.
Onde em São Gonçalo?”, perguntou. Respondi, entre mil “se não for te atrapalhar”, “por favor, não quero ser um incômodo” e todas essas formalidades. “Quê isso...”, ele dizia, “A gente só vai passar num lugarzinho antes”.
Nenhum assunto digno das mais baixas conversações passava pela minha cabeça, nem mesmo remotamente. Ficava sentado, olhando para o meu All Star preto. Estava extremamente desconfortável com o silêncio e, ainda assim, gostaria de impedir os instantes de se aniquilarem. Gostaria de reter os momentos.
Ele dobrou à direita. Eu sabia para onde ele estava indo. Ia comprar drogas e foi o que fizemos. É neste ponto que esta história vira um pornô estadunidense mal escrito. Ele saiu do carro para urinar e a minha mente decolou. Tudo fazia parte duma certa mágica vulgar e decadente. Que música se seguiu! O zíper abrindo, o roçar sutil do seu pênis na cueca, o elástico chicoteando voluptuosamente sua pele e então a urina batendo com força no chão, transbordando em masculinidade. Meu coração palpitava. Sentia um pulsar ritmado nas têmporas, enquanto olhava para ele. Ele estava de costas, segurava o pênis de maneira que me era quase táctil e me fazia olhar para as minhas próprias mãos. Ele deu uma olhadela para trás e eu disfarcei, envergonhado. Que bundinha perfeita. Depois das sacudidas básicas, ele voltou para o carro e apoiou a cabeça contra o volante. Meus pulmões se encheram do seu cheiro forte de cigarro. Os segundos se arrastaram por uma eternidade. Que incômodo. Ele viu que eu estava olhando para ele. M. encontrava-se agora olhando para o chão do carro, a cuca contra o volante. Foi aí, precisamente, que os clichês pornográficos começaram:
Vem cá”, ele disse, “você é ativo ou passivo?” A frase estourou contra o meu peito como um tiro de escopeta. Pensei que ia ter um ataque cardíaco. Não gastei tempo elaborando frases dignas de serem escritas. Viver não é narrar:
O que você quiser que eu seja”, respondi apenas.

[continua]

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Visitações


Poema em prosa dedicado à amiga Carmen de Carvalho:


Convide-me para dormir sobre os seus estranhos travesseiros, na sua casa; dormir na sua casa estranha, na sua estranha cama. E quando eu olhar em volta e vir quadros e bonecas de porcelana, e quando elas me olharem de volta, morbidamente, chegue a mão quieta para o meu lado, de forma que eu ouça apenas o riscar agoniante da sua unha no colchão. Quando o meu coração palpitar de ansiedade e eu for acometido dum soluço inexplicável e minhas orelhas ficarem vermelhas, me masturbe silenciosamente sob as colchas perfumadas, enquanto sinto frio, e o ventilador faz arrepiar a pele debaixo dos cobertores finos. Que eu sinta a sua mão pequena se fechar em volta do meu membro e suponha piedoso um cansaço estrangeiro no seu ombro. Depois adormeçamos, ligeiramente vexados do que fizemos, e quando eu acordar de manhã e puser os pés no chão gelado, diga que tem sandálias do seu pai que me cabem e que você as vai pegar para mim, já descendo as escadas, segurando a escova de dentes, inscrevendo um sorriso lindo nas faces óbvias.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O caso de M. e um pouco da minha vida particular (parte 1)

Doze páginas. Nenhuma nota. O que estou fazendo? Leio novamente, do começo; o texto é irreconhecível, como se jamais o tivesse lido. Como? Admiro-me da minha capacidade de passar os olhos de caractere a caractere sem depreender um mínimo de significação.
Alguém me chega à porta. Tomo ciência disso através de uma sombra que se me projeta na parede e que vejo de esguelha. Não me interessa. De que se tratava essa porcaria, mesmo? Arremesso o livro para longe. Encontro-me já com a mente turva; os pensamentos difusos e desamarrados. Jazo, como se aldravas pesadíssimas me obstassem agir doutra forma. Que foi que me embotou a tão remota acurácia dos pensamentos? Encontro-me hoje uma pessoa acrítica e inábil. E tenho apenas vinte anos...
Retorno aos meus poemas. Palavras, muitas delas gratuitas. Pináculos erigidos em torno de conceitos formais pré-moldados. Sou uma fraude. Debruço-me sobre uma das doze mil versões dum poema por que tenho carinho especial, sobre a bebida:

          Um ser humano degradado e corrupto,
Feio e gordo, degradado e corrupto.
 ...
Estou longe e sinto-me. Ab-rogo-me, absinto-me.
Sinto-te, etílico e mortal, nas minhas veias,
Refreando minha consciência,
Relaxando meus músculos.
Perco-me em toda sorte de reflexões.

e o excerto me faz sorrir. Reergo-me um pouco mais altivo, sacudindo a cerviz. Insólita e vaga compreensão de envaidecer-se da própria fraqueza. Quão poeticamente enlevo-me da lama à lama sublime da poesia!...
Quando é que eu vou publicar o meu livro, mesmo? Publish or perish, penso comigo mesmo. Volto ao meu trabalho minucioso de corrigir e editar meus textos. Ainda vou dizer que os escrevi todos de pé, numa noite só.
Fecho a porta com duas voltas de chave e começo a reescrever um poema que narrava um evento com verbos hora no presente, hora no pretérito. Olho em volta, sou tão facilmente distraído dos meus propósitos. Meu quarto não combina em nada com a figura soturna da minha literatura. É verde, com cortinas vivazes e um armário de compensado cor de mogno.
Eu sou ruivo, gordo, mas não tenho muitas sardas. Sou uma figura infeliz e inócua, não provoco embates por quaisquer discordâncias ou insatisfações; tenho tendência a ceder sempre. Digo sempre que está tudo bem, se me perguntam. Vez por outra me queixo de estar triste sem saber por quê. Ora...
Miro um papel amaçado com um começo de reflexão sobre não sei o quê.
Cansei de escrever.
---

Retorno agora, depois de duas horas a este... isto. Meus sentimentos não se alteraram minimamente. Estou profundamente entediado. Falei ao telefone com um amigo que me fez críticas mordazes ao poema que lhe enviei por e-mail.
Estou pensando em M. Que saudades...
Já sei! Vou falar sobre M., a minha melhor transa, de longe. Um sonho realizado.
Acontece que, desde muito cedo, quando eu ainda era apenas uma criança, eu passava com a minha mãe para ir ao mercado, ou para qualquer outro fim, e às vezes ele passava, jovem, viçoso... Sem dúvida, uma das figuras mais carismáticas com quem já tive contato. Ele era cerca de oito anos mais velho que eu; um garoto que meus pais viram crescer. Basta dizer que nosso relacionamento remonta duma relação que esse rapaz teve com alguém bem próximo a mim. Mesmo o leitor desatento terá percebido, em vista da referência ao rapaz através duma singela letra – que pode ser mesmo ficcional –, que não convém identificá-lo mais precisamente. Nem se harmoniza com as minhas conveniências identificar que pessoa é essa com que o tal se relacionava.
Mesmo ao fim dessa tal relação, houve reminiscências de afeição. Não, não faço jus ao que havia de fato: houve a preservação, intacta, da amizade entre esse rapaz, que era escopo de todos os mimos da comunidade de uma maneira geral, e minha família.
Então se por acaso eu andava de bicicleta na rua e ele passava, cumprimentávamo-nos naturalmente, e eu era invadido por um senso de afeto muito grande quando ele sorria e me acenava adeus. Quando o meu pai encontrava com ele, apertava sua mão com um respeito carinhoso, quase paternal. Se era, doutra sorte, minha mãe a esbarrar com ele ocasionalmente, beijava-lhe as bochechas e reafirmava o que ele já sabia: “Como você é lindo e amado, M.!” Eu era então uma criança ruiva e sorridente. Em tudo díspar da criaturinha triste e miserável que todos conhecem hoje.
Acaba de me ocorrer: quem eu estou tentando enganar? Ficará claro a qualquer jumento que não seja de todo ignorante aos fatos da minha vida de quem se trata esse tal M. Sendo assim, M. fora namorado da minha irmã. Mas não contem para ninguém. Há até uma história de que o rapaz e a moça, sapecas que só, entediados durante uma festa na casa da minha avó paterna, correram para o quarto dela e não saíram de lá até quebrarem a cama!
Tendo eles se separado, talvez antes disso, M. começou um relacionamento com outra mulher, com quem se casou e teve dois filhos. Outras coisas mudaram em sua vida: envolveu-se com drogas pesadas. Pense em cada substância inalável, injetável, fumável etc. já concebida pelo homem. M. está familiarizado com elas todas.
Pronto! Já está terminada toda identificação que poderia ser impingida sobre o rapaz. Nos próximos parágrafos eu devo revelar o RG do moço.
A essa altura, eu tinha uns dezessete anos. Eu mesmo me transformara por completo: o aluno exemplar estava agora no estágio embrionário do presente alcoólatra. Estava tomando gosto pela bebida, mas ainda não conhecia a minha saudosa cocaína, que me abandonou mais do que a abandonei. Havia deixado a escola pelo segundo ano consecutivo e me afundava numa depressão cada vez mais desesperadora. Passei anos a fio em que não ficava um só dia sem pensar em suicídio. Plano que, para a minha sorte ou azar, não se concretizou.
De encontro a todos os prognósticos brilhantes que foram feitos a meu respeito, larguei o colégio técnico e fui trabalhar como frentista num posto de gasolina onde o meu pai trabalhava. Não me permitia mais sonhar! A esperança era para os covardes.
Não podia negar o nojo, a ojeriza por aquele lugar repugnante, cheio de homens estúpidos e iletrados. Gente ignorante, indigna de respeito. Li um poema1 uma vez que traduzia a minha impressão; eis um recorte:

          “Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - 
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. 
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. 
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!”

Ainda vou escrever um livro sobre o período de tempo que eu passei trabalhando lá. Onze meses. Quanta porcaria, quanta coisa suja... Foi lá que comecei a cheirar pó. Misturei-me à podridão que eu mesmo desprezava. Era um deles. A diferença era eu ser um podre brilhante, eles só eram podres e nesses dias, inclusive M., já não era mais flor que se cheirasse.

[continua]



1- Ode triunfal, de Álvaro de Campos

quarta-feira, 6 de junho de 2012

"Sou feio" e outros poemas niilistas

Alacridade

Realizar. E por um instante gozar a satisfação de tê-lo feito.
Então cansar-se e lançar fora da vista o motivo de estar satisfeito.
Quanta vez tenho agido dessa maneira desafetuosa?

Sou feio

Que pena, sou feio.
Quem é que existe que anseie pela minha nudez
Ou pelo meu sexo?
Valho-me de bastar-lhes.
E, diga-se de passagem,
Ainda bem que bastar é transitivo indireto...

É muito defeito para um homem só.
Pena não ser estereótipo de nada saudável,
Porque eu gosto das pessoas.
Menos das feias.
A nudez dos feios é mais imoral, é desagradável.
O approach deles é assédio.

Mas contentemo-nos com o que temos,
Que é ser menos óbvio
E manter-se sóbrio até o final da noite,
Quando o senso de todos já está deveras ébrio
E seus sentidos embaralhados e cambaleantes.
O que rende uma poesia urbana,
Uma poesia... Bem, poesia psicossomática.

De que me valem as coisas?

De que me valem as coisas, cada uma delas,
Se tudo é insuficiente e falso, opressor e sujo?
Se me levanto e construo um castelo
Me é mais real o cansaço do que a ideia de que construí um castelo.
Então não tenho nada; nem uma saída por que fugir,
Nem uma canção pra cantar, como você, amigo.
Você que persiste nisso ou em quaisquer miragens.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Candy Says


Estou olhando para uma folha em branco e planejo escrever um conto. Não faço a mínima ideia do que estou prestes a fazer. Imagino que tudo se encadeará em improvisos. Nada é planejado. Frase a frase, eis o conto:

                A aberração, horrenda, Deixava-se caminhar de um lado pro outro no seu apartamento minúsculo na Amaral Peixoto. Não. Há começo melhor. Era um travesti. Ao som de Candy Says, do Velvet Underground – a melhor trilha sonora pra um travesti que não existe e por isso se pode dar ao luxo de ser culto – olhava-se no espelho, a coisa. Candy says ‘I’ve come to hate my body and all that it requires in this world…’” Ela ia nua de um lado pro outro, passando de frente ao espelho, permitindo-se olhar, com certa timidez, para si mesma, como se, em vez de olhar para si, procurasse se esgueirar para ver o pênis de algum rapaz em algum banheiro público; como se seus próprios olhares invadissem uma privacidade inexistente. Candy says ‘I’d like to know completely what others so discretely talk about...’”
                Eu sou linda, ela pensava na parte mais emergente da cabeça. Lá nos fundos abissais de si ela dizia... quero dizer, não sei se dizia. Era lá, bem, bem no fundo (só ouço os ecos abafados), creio compreendê-los e traduzi-los, digo, seus pensamentos, porquanto são os meus pensamentos. Lá no fundo ela sentia uma agonia que não dizia nada. Papai... Mamãe... “I’m gonna watch the blue birds fly over my shoulder... I’m gonna watch them pass me by…”
                Ela mexia nos peitos, fazia boca de pato para o espelho… Pegou um prestobarba o travesti inexistente e deu uma depiladinha na virilha. Que coisa!...
                O apartamento tão convenientemente alocado à proximidade duns pontos de prostituição e de catarse, onde miticamente convergem as margens de todo sistema social do ocidente. Pândegos, bêbados, drogados, mendigos, putas... Gosto da palavra “puta”... Ela começa com p, um som explosivo. Você junta o lábio de cima e o lábio de baixo, aperta um contra o outro e força o ar entre eles, num estouro!  Agora eu me lembrei do Prof. Dr. Farinaccio dizendo que “puta que pariu” era o seu palavrão preferido. Dois sons explosivos; a última palavra é oxítona. Você diz PUta que paRIU! Refrigério para a alma! Ainda, e isso é mais importante, há uma questão de origem. A expressão vem duma época em que a procedência do indivíduo era tudo. Sobrenome era uma coisa importante. “Conhece Fulano?” “De que família ele é?” “É filho de quem?...” Se a mãe é a puta, quem é o pai? Quem é você?... O que você significa para a sociedade?
                O que a nossa querida travesti sem nome representa? Ela existe? Na cabeça duns tais lá, ela ainda é o João, ou bem Rodrigo, o Igor, ou Marcos Vinícius... Quem vê através dessa puta?
                “...as coisas vivas, os cachorros, os homens, todas as massas moles que se movem espontaneamente nesse momento me fartam1”... Menos o nosso doce João, que não existe. E não existe em todos os sentidos: é uma personagem minha. As personagens só existem dentro da história. Nesta história, contudo, representação duma realidade suposta, a personagem não tem o direito nem de existir! Porque suas equivalentes no mundo fenomênico também não existem! Ó, minhas musas com falos! Passam, fantasmas arrastando correntes nas festas em que todos bebem e se divertem. Passam, sombras que não deixam rastro no mundo... “Maybe when I’m older… What do you think I’d see, if I could walk away from me?...”
                O vestido prateado, maravilhoso, está estendido sobre a cama. Ela quer sair. “Candy says ‘I hate the quiet places. That causes the smallest taste of what will be’… Candy says ‘I hate the big decisions. That causes endless revisions in my mind…'” Pra onde? Cantareira? Lapa?
                Ah, que vontade de cheirar um pó. Isso me deixa inquieta... Ela põe uma calcinha bem bonita, com um lacinho lilás. Por alguma razão, ela ainda se importa... Deus sabe que ela é a única que se importa. Ela acredita em Deus.
                I’m gonna watch the blue birds fly over my shoulder...Ela joga o vestido por cima das tetas nuas e falsas como tudo, menos o vazio que ela sente.  Ela pega as chaves. “I’m gonna watch them pass me by. Maybe when I’m older…Ela pega a sua bolsa, de cujo bom gosto tão inexistente quanto ela própria ela se gaba com os olhos ao andar nas ruas... What do you think I’d see, if I could walk away from me?...Ela fecha a porta atrás de si enquanto o corinho suave da banda vai morrendo e baixando.
                Como ela.


[escrito em 25min. Não há revisão, então  me perdoem pelos erros]


1- in SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Tradução de Rita Braga.

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A tal canção do Velvet Underground:



sábado, 26 de maio de 2012

Parte 3 (e final) da história


“Ver as coisas até o fundo...
E se as coisas não tiverem fundo?
(...)
Ó, face do mundo, só tu, de todas as faces,
És a própria alma que refletes”

ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)


Decerto, há um quê de inescrutável, de intangível, no ser. O nosso constante devir, a nossa constante inconstância, incoerência... Enorme parte do que somos se perde desde sempre nos limites do que pode ser expresso. Eis por que a primeira postagem, das três que compreendem o compêndio desta narrativa, começa com a minha amantíssima Joni Mitchell e dois versos da antológica canção “Hejira”, essa ode de desilusão. “Eu sei, ninguém vai me mostrar tudo.” Todos nós chegamos e partimos da mesma forma: desconhecidos. Cada um tão profundo e tão superficial...
            Peço desculpas, meus queridos leitores (que não são muitos, mas estejam certos de que são queridos. Vocês bebem dessa fonte que se derrama de mim nos meus textos e é como se fôssemos irmãos; isto nos aproxima à medida que parte de mim se revela nos meus sôfregos esforços de abrir minha caixa torácica e mostrar o meu coração), por não escapar ao clichê pessoano. Seus textos podem estar vulgarizados pelas páginas e páginas afora da internet, mas creio que, quando recorro ao Poeta de Lisboa, eu saiba o que estou fazendo.
            Outro nome de que abusei nas postagens anteriores foi o americano Whitman. Este parece dizer o contrário da canadense, que a alma aflora na superfície da pele... A princípio contraditoriamente, não tenho como discordar. Mas contraditoriamente só a princípio: ponhamos de lado o romantismo. Não acredito nessa baboseira de alma – e nem Pessoa e nem Mitchell e nem Whitman! A verdade é que, por vezes, quando digo alma, quero dizer essência. Então vejo que não há essência e que as coisas mudam... Então digo alma querendo dizer essa essência passageira, a essência do instante dado, o suprassumo do efêmero. Mas até isso é uma ilusão dos sentidos, que filtram tudo e tudo mentem. A realidade não se resume à nossa experiência estética, presunçosos leitores... Não creio numa alma enquanto uma existência metafísica, transcendente, intermediária entre os homens e Deus. Sendo essa a definição vulgar, não creio em alma, absolutamente. Mas não tenho problemas em admitir que, havendo ou não uma essência além da substância, haja uma parte oculta em todos nós, invariavelmente. Contento-me com isso; os outros não. E nessa busca por algo maior, nessa refusa a se contentar com o materialismo opaco, poetizam de todas as maneiras a tragédia da existência, caiam os muros de branco de neve e ornam as paredes mórbidas de escarlates desbotados. Obsta, contudo, o saber que nada disso é verdade, porque nada é verdade.
            Não sabem nada do que não veem, e o mesmo tanto sabem do que enxergam. Porque eis que não enxergam nada. Então vêm uns filósofos de moral e uns metafísicos meia-bosta inquirir sobre o meu comportamento, as minhas peripécias soturnas, e dizer que isso tudo é errado! Ó, plêiade de pensadores, que peguem o certo e o enfiem no cu, se nele couber. Não devo nada a ninguém. O que sabem vocês que excede o que eu sei? Pois que ninguém sabe nada, eu digo. E nesse mundo de mudança e contingência, nada há de ser permanente, nem o próprio mundo ele mesmo.
            Falemos de alma, então, como sendo a parte oculta de nós que se confunde com a mente, principalmente a parte que não se expressa do que somos. E sendo essa alma impalpável, sobra o corpo, esse fremente e real deslumbramento. Ainda que irreal mesmo o corpo, reais as minhas convulsões sobre ele. Daí, convergem esses conceitos numa só existência indivisível, meu composto corpo-alma, e ainda o corpo de quem estiver comigo e sua alma presumida, numa sopa orgânica e contígua. Serotonina: eis o meu deus perante o qual sou bacante alienada, extática!
            Mas lembremos que eu não sou filósofo!...

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A diegese seguia, antes dessa digressão ensaística, pelo que seria o meu frustrante retorno a casa. Depois de um começo de sexo, eu sempre tenho problemas com a consciência. Geralmente, as minhas relações sexuais envolvem a degradação pessoal de uma das partes (sim, geralmente uma das duas partes). Evadindo-me da tentação de definir “degradante”, diga-se que eu me sentia certa forma culpado pelo meu anônimo. O sangue desacelera nas veias e de repente veem-se abertos os caminhos para sortes incontáveis de reflexões... Percebi, por exemplo, que estava morrendo de medo dele o tempo todo, e que era mais medo do que atração, e que a atração era mais pelo medo do que por ele. Então lembrei que tudo aquilo não tinha nada a ver com sexo; era apenas uma revolta minha que instintivamente me arrastava para o marginal, para o anti-normativo... Senti nojo de mim mesmo. Lembrei da minha dimensão humana nesta história. Lembrei que não era rico e que qualquer centavo que eu continuasse gastando ia fazer falta pra algo importante. Lembrei que o meu bonitinho era um coitado cujo vício estava prestes a ser usado para rebaixá-lo, para o levar a fazer algo que não queria em troca de um veneno. Uma verdadeira epifania moral.
            Caminhávamos lado a lado, em silêncio, e eu o olhava. Ainda era lindo, mas de repente menos atraente. Mesmo assim, como que por um impulso divino plutônico:
            “A gente podia ir pra um motel”, eu disse. Ele disse “tá” e pegamos o primeiro táxi que passou.
            Ele falou com o taxista. Ele escolheu o motel. Fomos atendidos por um recepcionista no mínimo esquisito e eu paguei o olho da cara por uma suíte ordinária. Não sei se os decepciono, leitores, mas não vou ir muito a fundo nos detalhes “sórdidos”. Vamos, contudo, aos pontos interessantes.
            Ele tinha um pinto rosadinho! E isso é certamente válido mencionar! Segundo, não que eu creia ser realmente plausível a ideia de passividade em qualquer forma de sexo que não seja estupro, mas sendo esse o termo que usam geralmente, foi essa a sua postura. E eu esperava que ele fosse me comer. Não foi o que aconteceu. Curiosa a questão estereotípica. Um homenzarrão macho como aquele! Como caem por terra as nossas ideias quadradas...
            Terceiro, e isto é a cereja do meu manhattan cocktail!, o recepcionista do motel – estou rindo enquanto escrevo isto – nos propôs um ménage! Primeiro ele ligou pro nosso quarto. Quem atendeu foi o meu loirinho sem nome e eu achei estranhíssimo o tom da conversa. “Que houve?”, perguntei. Ele me disse e eu não acreditei. Sério, eu não acreditei; pensei que ele estivesse me zoando. “Para com isso”, eu disse. Eu permaneci descrente até o coiso bater na nossa porta, com uma porra duma toalha na mão, dizendo “Aqui, ó, a toalha que vocês pediram.” “Desculpa, eu não pedi nada. Não vai rolar. Se manda.” Atendi o cara, peladão, e fui bem direto. Já tem mais de um mês que isso aconteceu e eu ainda fico inculcado com essa porra. Como assim? Que merda é essa? Será que isso é prática comum nos motéis niteroienses e eu não sei? O loiro ria que só...
            Nos demos relativamente bem, eu e o cara. Ah, antes que eu me esqueça, outro detalhe é que ele me cobrou pela noite! Me senti bem menos explorador depois disso. Foi certamente um bálsamo para a consciência...
            A respeito dos nomes, tinha a nítida impressão de que chegamos a nos apresentar em algum momento naquela noite, mas depois, quanto perguntei qual era mesmo o nome dele, ele não respondeu. Trocamos telefones sob apelidos nas agendas. Eu fiquei sendo o Ruivo e ele o Loiro.
            Cuidou de dizer que não me apegasse, que era só sexo. Eu não esperava mais que isso. Outra coisa que eu não esperava era que ele me ligasse às duas da tarde, tendo nós saído do motel às oito da manhã, pra perguntar se a gente podia se encontrar de novo. “Tá bom, ‘Só Sexo'", pensei, e disse que sim.
            Nos encontramos algumas vezes. Hoje passamos o dia juntos, transamos na praia. Depois, enquanto repetíamos a dose na casa dele, ele chorou, lamentando ter terminado com uma namorada que eu nem sabia que ele tinha. Eu fiquei sem graça e fui embora. Coisa desconcertante, chorar durante o sexo. Ele não me cobra mais, embora eu ainda pague as bebidas. Enfim, o que começou movido a dinheiro...
            Obviamente, muitos detalhes da noite eu omiti, ou porque não quis dizer, ou porque achei irrelevante, ou porque fiquei com vergonha e tal. Mas o básico tá aqui.
            A propósito, hoje, finalmente, ele me disse seu nome: P. Eu sabia que tínhamos nos apresentado! Lembrei assim que ele me disse. Foi na praia do Gragoatá.
            Se eu lhe disse meu nome? Não.


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Aqui está a canção de onde tirei a epígrafe do primeiro post. Grande letra, grande música.


Aqui está a letra.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Poema reflexivo sobre a auto-extinção



Sei que vocês devem estar esperando a continuação da história das duas postagens anteriores, mas isso deve vir lá pro final desta semana. Enquanto isso, este é um poema que eu escrevi há cerca duns dois anos. Há de se perceber que eu estava numa atmosfera, enfim, não das melhores. Mas o que seria da arte sem o sofrimento, né mesmo?


Estou cansado e não me há cama.
Prostrado, um corpo pesado do pó da estrada
Sobre um par de pés ressecados
Os quais vagueiam andantes sobre uma vereda mui absurda,
Dum absurdo tamanho,
Que dessa composição de merda e lama
Não se depreende instância ou parcela
Aparte doutras parcelas ou instâncias.

De pé, na frente disso tudo,
Se quero ir, por que não vou?
Este inclinar-se e deter-se freudiano,
É, diga-se, querer dormir e ser insone!

Existir é-me um dever arbitrariamente atribuído.
Esse, diferente de males que se seguem,
É um mal que não cessa.
É uma cama de desconsolos
Como o leito constante e sem descanso de um doente.
Está claro que devo morrer.
É esta dor plástica que padeço,
O sofrer ingrato e sem critério,
O estado de vácuo sem anódinos possíveis
E as dúvidas e as urgências e o relógio:
Tudo isso me transtorna,
Tudo isso é para a minha alma como um porrete nas costelas...

De colapso sob o peso dos dias
(Inerte e melindroso de colapso sob o peso dos dias),
Estou. Sou um rato, positivamente.
Contradito, contrumanizado.
Sim, como mais um rato entre todos os ratos do mundo,
Sob o chão que todos os pés do mundo pisam, desapiedados.
Pesa-me o cérebro na cabeça,
Pesa-me a consciência no crânio da alma.
No coração, de forma muito própria,
Com um caráter muito único,
Tudo murcha e fenece
E se me esvai feito fumaça
Entre os dedos apertados, relutantes.

Se me distraio da minha própria dor,
Por conta de qualquer lapso de entorpecimento,
Sou como o afogado que emerge pra então afundar de novo.

Sinto-me a casca dalguma coisa,
Dalguma essência passadiça.

Vou-me cantando a canção.
Perder-se nela é estar completamente tenso.
Fujo. Sou louco, irremediavelmente.
Tranquei-me dentro de mim
E arrebentei a chave
E é isso.
Meus gritos são reflexos involuntários, reações naturais à dor, não um pedido de socorro.
Se há neles qualquer intenção, quero que olhem, não quero ser salvo.
Quem há ou haveria de devolver-me a alma?

Preso às aldravas da consciência
(Inerte e melindroso, preso às aldravas da consciência),
Valho-me de quê?
A realidade desola:
O homem é só o homem,
Deus é só Deus.
Sinto-me sujo,
Como se sentisse sempre aquele auto-desprezo pós-masturbatório, ou reflexivo.
É como se os cigarros dos outros amargassem a minha língua.
Partir! Partir é a resposta!
Vai-se o prazer, saciam-se as necessidades imediatas
E fica a sujeira sobre a cama
E ainda a sujeira dentro de mim
E sobre a mente, e sobre a pele e sobre tudo...

Se, contudo, há bastantes lágrimas, ainda,
Que possam ser arrancadas como se espreme uma laranja
E com que lavar meus lábios,
Se há bastantes vômitos
Para ruminar entre sensíveis idas ao banheiro
Por respeito do que nunca saberão, porque eis que não importa,
E se estou eu ainda agrilhoado a tal destino,
Estou aqui, resignado.
Não tenho forças o suficiente
Pra ficar de cama e sofrer-me indiferente ao mundo.
Sou mais como o barquinho que nem afunda nem ousa cortar os ventos,
Mas se dobra a eles e se deixa arrastar à deriva pelas águas.

Realizo minha serventia cotidiana
E sou igual.
Como todos os outros, movo o maquinário das coisas
E revolvo com elas.
Acordo em queda-livre das minhas quimeras
— E, ah, como o meu corpo procura o abraço das calçadas movimentadas! —

Os delírios da vida são como os delírios de uma paixão à distância,
Por natureza verídica.
Batam com força no meu rosto,
Verão se desperto desta... deste... orgasmo ao contrário,
Deste nojo pungente e agudo de mim mesmo.
Verão que é o que faço,
Sonho em não acordar — mas que bobagem! —

Se pudesse dormir e dormir e dormir...
E dormir e dormir e dormir e dormir e dormir, sem curiosidades,
Sem o horizonte sempre ao infinito menos um passo.
Pois sinto que caminho para o nada.
Sinto que caminho para o caminho; e todos seguem e não chegam nunca,
Invariavelmente diligentes e insuportáveis.
Sinto que estou dessensibilizado para as coisas boas.
E que injustiça, a dor!
Real como um câncer incipiente mas diagnosticado,
Desejoso de que a inconsciência seja a derradeira revelação a vir com a morte.
A partida, sim!, a que se atende!

Mas dou pra trás, sempre.
Sempre há algo dormente no meio de mim, que não é meu, nem sei o que é.
Sinto-me como um feto abortado,
Temo que o eu inteiro a que me quero restituir
Não passe de uma mentira do meu factual eu-pela-metade!
Sinto-me ao avesso.
Minha cabeça tão cheia de pensamentos
(E eles uivam feito uma ventania, feito uma multidão em fúria),
E minha alma tão vazia
Que minhas asseverações intelectuais escorrem pelo meu espírito abaixo
E o contaminam de humanidade e desilusão
Feito uma cólera, uma doença.

Invento passatempos, proponho paliativos,
Mas canso. Desisto.
Contento-me em gemer, sem vontade,
De forma a satisfazer os ouvidos dentro e fora da minha intimidade.
No fim, creio que seja isso:
Trepem, irmãs, trepem bastante.
E ao que quer morrer, deixem morrer um suicídio sem cartas,
Que a escala não tem razão, nem a viagem.

Fora que há muito mais que isto,
Muito mais que o resto, ou tudo, e está sempre tudo muito bom,
Mesmo esta merda de poema.


(BRAGA NETO)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Aquela história... (parte 2)



“But the expression of a well-made man appears not only in his face,
It is in his limbs and joints also, it is curiously in the joints of his hips and wrists,
It is in his walk, the carriage of his neck, the flex of his waist and knees, dress does not hide him,
The strong sweet quality he has strikes through the cotton and broadcloth,
To see him pass conveys as much as the best poem, perhaps more,
You linger to see his back, and the back of his neck and shoulder-side.”

WALT WHITMAN, ‘I Sing the Body Electric

              Primeiro de tudo, prometo que no próximo post a gente vai ter uma epígrafe em português. É que não imaginei algo que descrevesse melhor o meu êxtase, o meu transe no concernente ao já familiar rapaz do começo desta história do que este excerto do poeta americano, meu querido Walt. Eu estava tantalizado pelo corpo do homem. Eu me demorava olhando pra ele. Permitia-me fazer cara de idiota – pois, sim, quando um homem está perplexo, o certo, aconselha E. A. Poe, é que fique carrancudo. Do contrário, pode estar certo de que estará fazendo cara de idiota.
            O homem ficou lá, olhando pro mar, naquela orla sombria. E não convém chamá-lo mais rapaz. Acontece que o rapaz tinha trinta anos, fiquei sabendo depois.
Eu disse na semana passada que não me dei conta, pelo menos não no momento, de que ele estava inclinado, sim, a ceder. Pelo menos era o que eu tinha instrumento pra descobrir na hora. Em outras palavras, eu mandei a real pra ele e ele nem me porrou, nem foi embora. Mais tarde, é claro, ficou perceptível que “ceder” não era bem a palavra e que, no final, o gostosão tinha até tesão em mim.
            Dito isso, ele se aproximou de mim. “Você tá com o pó aí, ainda?” Ele parecia muito alterado. Estava completamente fora de si. Olhava pra um lado e pro outro com uma frequência agoniante. De tempo em tempo, ele apontava pra silhueta de alguma folha ou galho e perguntava se não era uma pessoa espiando. Não que isso fosse culpa só do pó. Houve um momento (e eu nem havia cheirado nada, ainda) em que confundi um monte de tijolos atrás de um barco, debaixo de uma amendoeira, com um casal se pegando. Mesmo assim, o carinha estava um lixo de paranoico. A minha resposta à sua pergunta foi sim, eu tinha pó, ainda, e ele se aproximou ainda mais. Fomos para debaixo de outra árvore, onde havia um toquinho serrado onde eu podia sentar. Pedi pra ele abrir as calças. Ele estava muito relutante, um saco... Eu começava a me arrepender dos cinquenta reais que já tinha gastado com a mercadoria. Aquilo era como o queijo da ratoeira: não se come, se bota veneno. Em outras palavras, ele não aceitasse a minha proposta, eu, quando muito, daria aquilo pra um amigo; isso se não jogasse tudo fora.
            Ele se afastou de novo. Eu estava cansado e a última coisa que eu precisava era ser tolhido pela glicose anal de um estranho. Fiquei puto, levantei e caminhei na direção da rua, tentando não olhar pra trás. Aí das duas uma: ou ele cagou pra mim, ou fingiu que cagou, porque não saiu de onde estava. Me deixou ir, o infeliz. Não sou a pessoa mais pretenciosa do mundo, mas essa era a última coisa que eu esperava. Sua inação me pegou de surpresa. O que eu ia fazer, então? Fazia parte do meu projeto que ele me detivesse. Fiz algo, nesse caso, que eu odeio fazer. Parei, dei meia volta e fui na direção dele. “Você tem certeza?
            Digo isso não sem um mínimo de constrangimento, embora todo mundo pague pau de vez em quando, hipocrisias à parte. Fora que ele era uma excelente peça.
            O importante é que sua postura mudou. De repente ele parecia mais disposto a fazer umas brincadeirinhas. E eu comia com os olhos aquela composição espetacular de músculos, tendões e cabelos. O jeito que o aspecto do pescoço mudava quando ele olhava pro lado, as juntas dos braços com os antebraços, cada fissura, saliência... Aquela sombra reminiscente duma barba aparentemente bem cheia, sem falhas. Ele era, sem dúvida, um homem bem-constituído e de porte. Eu, a essa altura, estava sentado no banquinho de toco e estávamos próximos o suficiente pra que eu começasse as carícias, as carícias mais íntimas possíveis. Por isso eu acho curioso quando o Whitman diz que a alma é o corpo. A profundidade que um toque pode alcançar no âmago do seu ser é indizível. Com que propriedade negar que, enquanto eu tocava seu corpo, não tocava também a sua alma?
            O calor do momento, entretanto, obstava tais devaneios. Ele tirou a camisa enquanto eu o felava. A diversão, contudo, durou pouco. Qualquer mariposa passando debaixo de poste era suficiente para assustá-lo, para tirá-lo do lugar e fazê-lo esgueirar-se pra ir dar uma olhada.
             Cansei e nos despedimos. Ele se vestiu e fomos caminhando para a rua, onde ele pegaria um caminho e eu outro. Dei-lhe toda a cocaína que estava comigo. Aquilo, afinal, não me interessava.
            A noite já começava a dar sinais de que estava chegando ao fim. Um homem de short e tênis parecia estar saindo pra caminhar e nós na balbúrdia, pro dia nascer feliz. O meu gostosinho me convidou pra ir à casa dele. Vocês deveriam é estar lá pra ver a cara de nojo que eu comecei a fazer, mas, para fins pragmáticos, conveio que dissesse apenas não. Eu mal o conhecia. Foi quando ele disse que ele poderia ir na mesma direção que eu. Pra lá também tinha ônibus, ele dizia.
            A verdade é que (termino de contar isso no outro post) a gente terminou a noite num motel no Rinque. Foi uma maravilha.

[continua]