Doze páginas. Nenhuma nota. O que estou fazendo? Leio
novamente, do começo; o texto é irreconhecível, como se jamais o tivesse lido. Como?
Admiro-me da minha capacidade de passar os olhos de caractere a caractere sem
depreender um mínimo de significação.
Alguém me chega à porta. Tomo ciência disso através de
uma sombra que se me projeta na parede e que vejo de esguelha. Não me interessa.
De que se tratava essa porcaria, mesmo? Arremesso o livro para longe. Encontro-me
já com a mente turva; os pensamentos difusos e desamarrados. Jazo, como se
aldravas pesadíssimas me obstassem agir doutra forma. Que foi que me embotou a tão
remota acurácia dos pensamentos? Encontro-me hoje uma pessoa acrítica e inábil.
E tenho apenas vinte anos...
Retorno aos meus poemas. Palavras, muitas delas
gratuitas. Pináculos erigidos em torno de conceitos formais pré-moldados. Sou
uma fraude. Debruço-me sobre uma das doze mil versões dum poema por que tenho
carinho especial, sobre a bebida:
Um ser humano degradado e
corrupto,
Feio e gordo, degradado e corrupto.
...
Estou longe e sinto-me. Ab-rogo-me, absinto-me.
Sinto-te, etílico e mortal, nas minhas veias,
Refreando minha consciência,
Relaxando meus músculos.
Perco-me em toda sorte de reflexões.
e o excerto me faz sorrir. Reergo-me um pouco mais altivo,
sacudindo a cerviz. Insólita e vaga compreensão de envaidecer-se da própria
fraqueza. Quão poeticamente enlevo-me da lama à lama sublime da poesia!...
Quando é que eu vou publicar o meu livro, mesmo? Publish or perish, penso comigo mesmo. Volto
ao meu trabalho minucioso de corrigir e editar meus textos. Ainda vou dizer que
os escrevi todos de pé, numa noite só.
Fecho a porta com duas voltas de chave e começo a reescrever
um poema que narrava um evento com verbos hora no presente, hora no pretérito. Olho
em volta, sou tão facilmente distraído dos meus propósitos. Meu quarto não
combina em nada com a figura soturna da minha literatura. É verde, com cortinas
vivazes e um armário de compensado cor de mogno.
Eu sou ruivo, gordo, mas não tenho muitas sardas. Sou uma
figura infeliz e inócua, não provoco embates por quaisquer discordâncias ou
insatisfações; tenho tendência a ceder sempre. Digo sempre que está tudo bem,
se me perguntam. Vez por outra me queixo de estar triste sem saber por quê.
Ora...
Miro um papel amaçado com um começo de reflexão sobre não
sei o quê.
Cansei de escrever.
---
Retorno agora, depois de duas horas a este... isto. Meus
sentimentos não se alteraram minimamente. Estou profundamente entediado. Falei ao
telefone com um amigo que me fez críticas mordazes ao poema que lhe enviei por
e-mail.
Estou pensando em M. Que saudades...
Já sei! Vou falar sobre M., a minha melhor transa, de
longe. Um sonho realizado.
Acontece que, desde muito cedo, quando eu ainda era
apenas uma criança, eu passava com a minha mãe para ir ao mercado, ou para
qualquer outro fim, e às vezes ele passava, jovem, viçoso... Sem dúvida, uma
das figuras mais carismáticas com quem já tive contato. Ele era cerca de oito
anos mais velho que eu; um garoto que meus pais viram crescer. Basta dizer que
nosso relacionamento remonta duma relação que esse rapaz teve com alguém bem
próximo a mim. Mesmo o leitor desatento terá percebido, em vista da referência
ao rapaz através duma singela letra – que pode ser mesmo ficcional –, que não
convém identificá-lo mais precisamente. Nem se harmoniza com as minhas
conveniências identificar que pessoa é essa com que o tal se relacionava.
Mesmo ao fim dessa tal relação, houve reminiscências de afeição. Não, não faço jus ao que havia de fato: houve a preservação, intacta, da
amizade entre esse rapaz, que era escopo de todos os mimos da comunidade de uma
maneira geral, e minha família.
Então se por acaso eu andava de bicicleta na rua e ele
passava, cumprimentávamo-nos naturalmente, e eu era invadido por um senso de
afeto muito grande quando ele sorria e me acenava adeus. Quando o meu pai
encontrava com ele, apertava sua mão com um respeito carinhoso, quase paternal.
Se era, doutra sorte, minha mãe a esbarrar com ele ocasionalmente, beijava-lhe
as bochechas e reafirmava o que ele já sabia: “Como você é lindo e amado, M.!” Eu era então uma criança ruiva e
sorridente. Em tudo díspar da criaturinha triste e miserável que todos conhecem
hoje.
Acaba de me ocorrer: quem eu estou tentando enganar?
Ficará claro a qualquer jumento que não seja de todo ignorante aos fatos da
minha vida de quem se trata esse tal M. Sendo assim, M. fora namorado da minha
irmã. Mas não contem para ninguém. Há até uma história de que o rapaz e a moça,
sapecas que só, entediados durante uma festa na casa da minha avó paterna, correram
para o quarto dela e não saíram de lá até quebrarem a cama!
Tendo eles se separado, talvez antes disso, M. começou um
relacionamento com outra mulher, com quem se casou e teve dois filhos. Outras
coisas mudaram em sua vida: envolveu-se com drogas pesadas. Pense em cada substância
inalável, injetável, fumável etc. já concebida pelo homem. M. está familiarizado com
elas todas.
Pronto! Já está terminada toda identificação que poderia
ser impingida sobre o rapaz. Nos próximos parágrafos eu devo revelar o RG do
moço.
A essa altura, eu tinha uns dezessete anos. Eu mesmo me
transformara por completo: o aluno exemplar estava agora no estágio embrionário
do presente alcoólatra. Estava tomando gosto pela bebida, mas ainda não
conhecia a minha saudosa cocaína, que me abandonou mais do que a abandonei. Havia
deixado a escola pelo segundo ano consecutivo e me afundava numa depressão
cada vez mais desesperadora. Passei anos a fio em que não ficava um só dia sem pensar em suicídio. Plano que, para a minha sorte ou azar, não se concretizou.
De encontro a todos os prognósticos brilhantes que foram
feitos a meu respeito, larguei o colégio técnico e fui trabalhar como frentista
num posto de gasolina onde o meu pai trabalhava. Não me permitia mais sonhar! A
esperança era para os covardes.
Não podia negar o nojo, a ojeriza por aquele lugar
repugnante, cheio de homens estúpidos e iletrados. Gente ignorante, indigna de
respeito. Li um poema1 uma vez que traduzia a minha impressão; eis um
recorte:
“Ah, e a gente
ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!”
Ainda vou escrever um livro sobre o período de tempo que
eu passei trabalhando lá. Onze meses. Quanta porcaria, quanta coisa suja... Foi
lá que comecei a cheirar pó. Misturei-me à podridão que eu mesmo desprezava.
Era um deles. A diferença era eu ser um podre brilhante, eles só eram podres e nesses dias, inclusive M., já não era mais flor que se cheirasse.
[continua]
1- Ode triunfal, de Álvaro de Campos