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Eu, brindando aos meus 21 anos |
Bebi alguma coisa e resolvi dar cabo desse
hiato criativo. Nada como um revigorante chá de folha de coca vindo direto de Cusco, no Peru, que um amigo trouxe para mim este fim de semana. Foi meu aniversário, essa sexta. A bem da verdade, eu vinha andando deprê demais para escrever
qualquer coisa. Que teria feito? Fumado um cigarro na sacada do Bay Market e
observado os pombos em busca de inspiração? De certo, as bichas indo e voltando
teriam sido matéria-prima dalguma crônica sobre a liturgia do rendez-vous nos banheiros públicos, e de
como saem uns após uns, de intervalo em intervalo, o que é protocolar desses
encontros furtivos, e, como que para se chacoalhar de sua austeridade
constrangida, tomam uma casquinha no quiosque do McDonald’s... Mas, ah, tenha
dó!...
Vou é parafrasear Garrett e dizer que o
teclado do meu laptop é mais cobiçoso. E como Viagens na minha terra não é lá bem um best-seller, talvez a
referência ecoe vazia em meia dúzia de crânios.
Enfim, vamos pôr as fofocas em dia. Li uma
dezena de livros, caminhei sozinho na mata com fones no ouvido, sentindo o
estalo dos gravetos no chão, catando folhas no cabelo, suado, assoviando.
Mantive um überlongo jejum sexual, abstive-me do fumo e da bebida (tá, nem
tanto)... Foram meses benfazejos!
Benfazejos sim, mas como este blog é casto
como os lençóis de um prostíbulo, será outra a minha matéria. É dum relato em
terceira, quarta mão.
I
Há essa tal casa abandonada em... Trata-se
duma casa velha, muito espaçosa, muito antiga. Diz-se ter pertencido a certo...
O assoalho de madeira, lustres, parte do encanamento, uns bustos aqui e acolá,
a maior parte das portas e janelas foram subtraídos da edificação, de forma que
os compartimentos se comunicam livremente através de aberturas disformes e as
reminiscências assim dispostas congregam-se num aspecto de arcabouço. Em certos
cômodos a estrutura cedeu duma maneira tal que as paredes ameaçam precipitar-se
inteiras sobre o chão, agora desguarnecido; em toda parte observam-se os
efeitos do abandono remoto, e o ar tristonho e miserável do prédio vê-se até na
vegetação hirta e ebúrnea que se lhe entranha por entre as gretas. São muros
altos, eivados de infiltrações; o revestimento se desprende sozinho da parede,
e desnuda em alguns pontos a alvenaria maciça de barro cozido. No vão entre os
dois braços do muro, há um portão enorme, pesado, encanecido de ferrugem, que
serve de acesso à velha residência. Passa-se pelos portões e se caminha cerca
de vinte minutos até o domicílio, ou carcaça do domicílio do caseiro por um
logradouro estreito. O caminho foi invadido em alguns pontos pela grama e
pelas daninhas, muito altas. Depois de cerca de mais dez a quinze minutos,
chega-se ao casarão em ruína.
É uma construção isolada. A vegetação
circunstante densa e supina, de forma que, dando-se às costas qualquer fachada,
tem-se a impressão de que por quilômetros e mais quilômetros não há nada em
volta além de gramíneas e arvoredos.
Muito já se fez para impedir os absurdos que
tomam lugar entre suas paredes, que serão objeto destes breves capítulos; nada
parece ter surtido efeito, entretanto. Amiúde bloquearam as entradas, por vezes
pregando tábuas, por vezes fechando tudo com tijolos, e passaram correntes
grossas entre as grades do portão. Dias depois estava tudo escancarado outra
vez.
II
Nosso amigo foi deitar-se, nu como de
costume, os óculos ainda na cara. Reparava para suas mãos, os pelinhos nas
falanges, os nós dos dedos. Via o abdome cavado entre as costelas, o membro
serenado, de esguelha, o prepúcio abotoado como uma gêmula. Dormiu, e acordou
de manhã.
A língua esbranquiçada, o paladar acerbo na
boca; escovou os dentes mirando sua própria fronte no espelho: os óculos, os
cravos no nariz, o rosto fino, os cabelos escuros; uns pontinhos pretos debaixo
das ventas e na ponta do queixo, rudimentos de barba que ele tirava dia sim,
dia não; um tufo de pelos no meio do tórax e em volta dos mamilos. Lavou o suor
do corpo e se secou com a toalha velha, manchada de água sanitária. Pôs a cueca
no cesto de roupa suja e desceu para tomar café.
Enquanto mastigava sua broa de milho, sentia
pulsar a região meridional à recordação dum ânus rosado, incomumente aberto,
liso, uma planta carnívora, e a parede a sua frente desbotava, sua boca
semiabria-se e um espasmo fez fremir sua cabeça por sobre os ombros.
O dia se arrastou e a cada hora que se sucedia,
havia a impressão de que um Aquiles se aproximava mais e mais duma tartaruga
sem que jamais a alcançasse. Mas se o tempo não é dado a favores, tampouco se
ocupa de pôr empecilhos ao que se passa por estas bandas. E assim, em sua
décima milésima consulta ao relógio, era hora de ir.