sábado, 26 de maio de 2012

Parte 3 (e final) da história


“Ver as coisas até o fundo...
E se as coisas não tiverem fundo?
(...)
Ó, face do mundo, só tu, de todas as faces,
És a própria alma que refletes”

ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)


Decerto, há um quê de inescrutável, de intangível, no ser. O nosso constante devir, a nossa constante inconstância, incoerência... Enorme parte do que somos se perde desde sempre nos limites do que pode ser expresso. Eis por que a primeira postagem, das três que compreendem o compêndio desta narrativa, começa com a minha amantíssima Joni Mitchell e dois versos da antológica canção “Hejira”, essa ode de desilusão. “Eu sei, ninguém vai me mostrar tudo.” Todos nós chegamos e partimos da mesma forma: desconhecidos. Cada um tão profundo e tão superficial...
            Peço desculpas, meus queridos leitores (que não são muitos, mas estejam certos de que são queridos. Vocês bebem dessa fonte que se derrama de mim nos meus textos e é como se fôssemos irmãos; isto nos aproxima à medida que parte de mim se revela nos meus sôfregos esforços de abrir minha caixa torácica e mostrar o meu coração), por não escapar ao clichê pessoano. Seus textos podem estar vulgarizados pelas páginas e páginas afora da internet, mas creio que, quando recorro ao Poeta de Lisboa, eu saiba o que estou fazendo.
            Outro nome de que abusei nas postagens anteriores foi o americano Whitman. Este parece dizer o contrário da canadense, que a alma aflora na superfície da pele... A princípio contraditoriamente, não tenho como discordar. Mas contraditoriamente só a princípio: ponhamos de lado o romantismo. Não acredito nessa baboseira de alma – e nem Pessoa e nem Mitchell e nem Whitman! A verdade é que, por vezes, quando digo alma, quero dizer essência. Então vejo que não há essência e que as coisas mudam... Então digo alma querendo dizer essa essência passageira, a essência do instante dado, o suprassumo do efêmero. Mas até isso é uma ilusão dos sentidos, que filtram tudo e tudo mentem. A realidade não se resume à nossa experiência estética, presunçosos leitores... Não creio numa alma enquanto uma existência metafísica, transcendente, intermediária entre os homens e Deus. Sendo essa a definição vulgar, não creio em alma, absolutamente. Mas não tenho problemas em admitir que, havendo ou não uma essência além da substância, haja uma parte oculta em todos nós, invariavelmente. Contento-me com isso; os outros não. E nessa busca por algo maior, nessa refusa a se contentar com o materialismo opaco, poetizam de todas as maneiras a tragédia da existência, caiam os muros de branco de neve e ornam as paredes mórbidas de escarlates desbotados. Obsta, contudo, o saber que nada disso é verdade, porque nada é verdade.
            Não sabem nada do que não veem, e o mesmo tanto sabem do que enxergam. Porque eis que não enxergam nada. Então vêm uns filósofos de moral e uns metafísicos meia-bosta inquirir sobre o meu comportamento, as minhas peripécias soturnas, e dizer que isso tudo é errado! Ó, plêiade de pensadores, que peguem o certo e o enfiem no cu, se nele couber. Não devo nada a ninguém. O que sabem vocês que excede o que eu sei? Pois que ninguém sabe nada, eu digo. E nesse mundo de mudança e contingência, nada há de ser permanente, nem o próprio mundo ele mesmo.
            Falemos de alma, então, como sendo a parte oculta de nós que se confunde com a mente, principalmente a parte que não se expressa do que somos. E sendo essa alma impalpável, sobra o corpo, esse fremente e real deslumbramento. Ainda que irreal mesmo o corpo, reais as minhas convulsões sobre ele. Daí, convergem esses conceitos numa só existência indivisível, meu composto corpo-alma, e ainda o corpo de quem estiver comigo e sua alma presumida, numa sopa orgânica e contígua. Serotonina: eis o meu deus perante o qual sou bacante alienada, extática!
            Mas lembremos que eu não sou filósofo!...

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A diegese seguia, antes dessa digressão ensaística, pelo que seria o meu frustrante retorno a casa. Depois de um começo de sexo, eu sempre tenho problemas com a consciência. Geralmente, as minhas relações sexuais envolvem a degradação pessoal de uma das partes (sim, geralmente uma das duas partes). Evadindo-me da tentação de definir “degradante”, diga-se que eu me sentia certa forma culpado pelo meu anônimo. O sangue desacelera nas veias e de repente veem-se abertos os caminhos para sortes incontáveis de reflexões... Percebi, por exemplo, que estava morrendo de medo dele o tempo todo, e que era mais medo do que atração, e que a atração era mais pelo medo do que por ele. Então lembrei que tudo aquilo não tinha nada a ver com sexo; era apenas uma revolta minha que instintivamente me arrastava para o marginal, para o anti-normativo... Senti nojo de mim mesmo. Lembrei da minha dimensão humana nesta história. Lembrei que não era rico e que qualquer centavo que eu continuasse gastando ia fazer falta pra algo importante. Lembrei que o meu bonitinho era um coitado cujo vício estava prestes a ser usado para rebaixá-lo, para o levar a fazer algo que não queria em troca de um veneno. Uma verdadeira epifania moral.
            Caminhávamos lado a lado, em silêncio, e eu o olhava. Ainda era lindo, mas de repente menos atraente. Mesmo assim, como que por um impulso divino plutônico:
            “A gente podia ir pra um motel”, eu disse. Ele disse “tá” e pegamos o primeiro táxi que passou.
            Ele falou com o taxista. Ele escolheu o motel. Fomos atendidos por um recepcionista no mínimo esquisito e eu paguei o olho da cara por uma suíte ordinária. Não sei se os decepciono, leitores, mas não vou ir muito a fundo nos detalhes “sórdidos”. Vamos, contudo, aos pontos interessantes.
            Ele tinha um pinto rosadinho! E isso é certamente válido mencionar! Segundo, não que eu creia ser realmente plausível a ideia de passividade em qualquer forma de sexo que não seja estupro, mas sendo esse o termo que usam geralmente, foi essa a sua postura. E eu esperava que ele fosse me comer. Não foi o que aconteceu. Curiosa a questão estereotípica. Um homenzarrão macho como aquele! Como caem por terra as nossas ideias quadradas...
            Terceiro, e isto é a cereja do meu manhattan cocktail!, o recepcionista do motel – estou rindo enquanto escrevo isto – nos propôs um ménage! Primeiro ele ligou pro nosso quarto. Quem atendeu foi o meu loirinho sem nome e eu achei estranhíssimo o tom da conversa. “Que houve?”, perguntei. Ele me disse e eu não acreditei. Sério, eu não acreditei; pensei que ele estivesse me zoando. “Para com isso”, eu disse. Eu permaneci descrente até o coiso bater na nossa porta, com uma porra duma toalha na mão, dizendo “Aqui, ó, a toalha que vocês pediram.” “Desculpa, eu não pedi nada. Não vai rolar. Se manda.” Atendi o cara, peladão, e fui bem direto. Já tem mais de um mês que isso aconteceu e eu ainda fico inculcado com essa porra. Como assim? Que merda é essa? Será que isso é prática comum nos motéis niteroienses e eu não sei? O loiro ria que só...
            Nos demos relativamente bem, eu e o cara. Ah, antes que eu me esqueça, outro detalhe é que ele me cobrou pela noite! Me senti bem menos explorador depois disso. Foi certamente um bálsamo para a consciência...
            A respeito dos nomes, tinha a nítida impressão de que chegamos a nos apresentar em algum momento naquela noite, mas depois, quanto perguntei qual era mesmo o nome dele, ele não respondeu. Trocamos telefones sob apelidos nas agendas. Eu fiquei sendo o Ruivo e ele o Loiro.
            Cuidou de dizer que não me apegasse, que era só sexo. Eu não esperava mais que isso. Outra coisa que eu não esperava era que ele me ligasse às duas da tarde, tendo nós saído do motel às oito da manhã, pra perguntar se a gente podia se encontrar de novo. “Tá bom, ‘Só Sexo'", pensei, e disse que sim.
            Nos encontramos algumas vezes. Hoje passamos o dia juntos, transamos na praia. Depois, enquanto repetíamos a dose na casa dele, ele chorou, lamentando ter terminado com uma namorada que eu nem sabia que ele tinha. Eu fiquei sem graça e fui embora. Coisa desconcertante, chorar durante o sexo. Ele não me cobra mais, embora eu ainda pague as bebidas. Enfim, o que começou movido a dinheiro...
            Obviamente, muitos detalhes da noite eu omiti, ou porque não quis dizer, ou porque achei irrelevante, ou porque fiquei com vergonha e tal. Mas o básico tá aqui.
            A propósito, hoje, finalmente, ele me disse seu nome: P. Eu sabia que tínhamos nos apresentado! Lembrei assim que ele me disse. Foi na praia do Gragoatá.
            Se eu lhe disse meu nome? Não.


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Aqui está a canção de onde tirei a epígrafe do primeiro post. Grande letra, grande música.


Aqui está a letra.

9 comentários:

  1. eu quero os detalhes sórdidos.

    serio, ate entendo que vc nao queira escrever, mas pela narrativa do texto eu fiquei esperando os detalhes, vc descrever as cenas. senti tanto tesão nas duas partes e a terceira michou. vc bateu na porta e me entregou a toalha. ehehehehe

    realmente, surreal a cena com o porteiro.

    bjos

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  2. hahaha Ligeiro o Recepcionista...

    e Como sua escrita envolve.. ;)

    Gato por lebre, estereótipos ainda me matam!

    E foi bom ocultar o nome..

    E sim aquilo, nos remete a felicidade...

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  3. Fico feliz que seu blog tenha tomado essa proporção. Aqui, talvez até inconscientemente, você se mostra da maneira mais crua, sem processamento, como jamais seria capaz de fazer pessoalmente. Quem te conhece sabe o quanto você é engajado em causas que envolvem preconceitos de qualquer tipo... Típico talvez. Mas aqui, você conseguiu impregnar o post com todo o seu preconceito mais pessoal e escondido, principalmente ao revelar seu peso na consciência ao supostamente "aliciar" o rapaz a fazer algo tão errado quanto ter relações com uma pessoa do mesmo sexo. Você revelou sua parte que ainda não teve tempo de consertar, amigo. Revelou o que ainda resta do senso-comum ruim de uma sociedade cujas influências tentamos selecionar com a maior eficiência possível. Também percebi isso, não só aqui mas também undo me contou a história pessoalmente, a presença massante de um outro elemento de preconceito muito presente: a tal da passividade. por ser homossexual assumido e por não ter os mesmos atributos físicos tão másculos que descrevera, você se julgara menos homem que ele, logo deveria assumir a posição mais próxima ao feminino aka mais humilhante (vindo de um comportamento scoial tão sexista quanto o nosso). Estou satisfeito, isso tudo significa que você de fato não filtrou o post, colocou tudo o que deveria conter, sem mais, nem menos... rs

    Um abraço, amigo...

    Até

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  4. Que poético, profundo, inoxidável!
    Dificilmente eu me interesso por histórias pessoais e aleatórias, mas estou fisgado desde a 1a parte! Adorei o ritmo do texto, o formato e esse ar poético em torno da situação!
    Um abç
    N.B.

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    1. Que bom que você gostou, meu lindo!Se os comentários já são bem-vindos de uma maneira geral, os seus, então, são mais do que isso! Ótimo te ter por aqui, N.B.

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  5. Meu amigo, comecei a ler teu blog agora há pouco e acho difícil parar até que o tenha lido por inteiro. Tu escreves muito bem! E a história não nos deixa ficar sem terminar...

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