segunda-feira, 4 de junho de 2012

Candy Says


Estou olhando para uma folha em branco e planejo escrever um conto. Não faço a mínima ideia do que estou prestes a fazer. Imagino que tudo se encadeará em improvisos. Nada é planejado. Frase a frase, eis o conto:

                A aberração, horrenda, Deixava-se caminhar de um lado pro outro no seu apartamento minúsculo na Amaral Peixoto. Não. Há começo melhor. Era um travesti. Ao som de Candy Says, do Velvet Underground – a melhor trilha sonora pra um travesti que não existe e por isso se pode dar ao luxo de ser culto – olhava-se no espelho, a coisa. Candy says ‘I’ve come to hate my body and all that it requires in this world…’” Ela ia nua de um lado pro outro, passando de frente ao espelho, permitindo-se olhar, com certa timidez, para si mesma, como se, em vez de olhar para si, procurasse se esgueirar para ver o pênis de algum rapaz em algum banheiro público; como se seus próprios olhares invadissem uma privacidade inexistente. Candy says ‘I’d like to know completely what others so discretely talk about...’”
                Eu sou linda, ela pensava na parte mais emergente da cabeça. Lá nos fundos abissais de si ela dizia... quero dizer, não sei se dizia. Era lá, bem, bem no fundo (só ouço os ecos abafados), creio compreendê-los e traduzi-los, digo, seus pensamentos, porquanto são os meus pensamentos. Lá no fundo ela sentia uma agonia que não dizia nada. Papai... Mamãe... “I’m gonna watch the blue birds fly over my shoulder... I’m gonna watch them pass me by…”
                Ela mexia nos peitos, fazia boca de pato para o espelho… Pegou um prestobarba o travesti inexistente e deu uma depiladinha na virilha. Que coisa!...
                O apartamento tão convenientemente alocado à proximidade duns pontos de prostituição e de catarse, onde miticamente convergem as margens de todo sistema social do ocidente. Pândegos, bêbados, drogados, mendigos, putas... Gosto da palavra “puta”... Ela começa com p, um som explosivo. Você junta o lábio de cima e o lábio de baixo, aperta um contra o outro e força o ar entre eles, num estouro!  Agora eu me lembrei do Prof. Dr. Farinaccio dizendo que “puta que pariu” era o seu palavrão preferido. Dois sons explosivos; a última palavra é oxítona. Você diz PUta que paRIU! Refrigério para a alma! Ainda, e isso é mais importante, há uma questão de origem. A expressão vem duma época em que a procedência do indivíduo era tudo. Sobrenome era uma coisa importante. “Conhece Fulano?” “De que família ele é?” “É filho de quem?...” Se a mãe é a puta, quem é o pai? Quem é você?... O que você significa para a sociedade?
                O que a nossa querida travesti sem nome representa? Ela existe? Na cabeça duns tais lá, ela ainda é o João, ou bem Rodrigo, o Igor, ou Marcos Vinícius... Quem vê através dessa puta?
                “...as coisas vivas, os cachorros, os homens, todas as massas moles que se movem espontaneamente nesse momento me fartam1”... Menos o nosso doce João, que não existe. E não existe em todos os sentidos: é uma personagem minha. As personagens só existem dentro da história. Nesta história, contudo, representação duma realidade suposta, a personagem não tem o direito nem de existir! Porque suas equivalentes no mundo fenomênico também não existem! Ó, minhas musas com falos! Passam, fantasmas arrastando correntes nas festas em que todos bebem e se divertem. Passam, sombras que não deixam rastro no mundo... “Maybe when I’m older… What do you think I’d see, if I could walk away from me?...”
                O vestido prateado, maravilhoso, está estendido sobre a cama. Ela quer sair. “Candy says ‘I hate the quiet places. That causes the smallest taste of what will be’… Candy says ‘I hate the big decisions. That causes endless revisions in my mind…'” Pra onde? Cantareira? Lapa?
                Ah, que vontade de cheirar um pó. Isso me deixa inquieta... Ela põe uma calcinha bem bonita, com um lacinho lilás. Por alguma razão, ela ainda se importa... Deus sabe que ela é a única que se importa. Ela acredita em Deus.
                I’m gonna watch the blue birds fly over my shoulder...Ela joga o vestido por cima das tetas nuas e falsas como tudo, menos o vazio que ela sente.  Ela pega as chaves. “I’m gonna watch them pass me by. Maybe when I’m older…Ela pega a sua bolsa, de cujo bom gosto tão inexistente quanto ela própria ela se gaba com os olhos ao andar nas ruas... What do you think I’d see, if I could walk away from me?...Ela fecha a porta atrás de si enquanto o corinho suave da banda vai morrendo e baixando.
                Como ela.


[escrito em 25min. Não há revisão, então  me perdoem pelos erros]


1- in SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Tradução de Rita Braga.

---

A tal canção do Velvet Underground:



14 comentários:

  1. muito bom
    adorei as reflexoes metatextuais

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Na falta de enredo, a gente faz isso. A música foi outro recurso que eu usei para compensar a ausência de planejamento.

      Eliminar
  2. Perfeito, amigo... Saudade dos seus contos. Identificação no tempo e no espaço deixou seu texto muito interessante. Parece que que, mesmo afirmando a irrealidade da história e da personagem, você se preocupou em dar uma vida a ela, pensou no apartamento na Amaral Peixoto, pensou na Lapa, na Cantareira... Nem sei mais o que falar desse texto, primoroso... xD

    Um grande abraço, amigo... até

    ResponderEliminar
  3. "Agora eu me lembrei do Dr. Farinaccio dizendo que “puta que pariu” era o seu palavrão preferido."

    Ah, o Farinaccio! (L)

    Belo texto, Walmir. Adoro a intensidade das palavras.
    Grande beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ah, sim, o Farinaccio!
      Obrigado pela visita, Fran!

      Beijo pra você.

      Eliminar
  4. Quem é ela? Uma Venus de Milo pós-punk? Uma Hedwig de Angry Inch? É algo de bizarro entre o que se é e o que se quer no meio dum caos calmo?

    Eu sei que eu também gostaria de vê-la nua.

    Legal seu texto. Teve horas que eu me senti meio perdida, mas fui pegando as migalhas loureedianas pra voltar de volta pro caminho!

    Keep writing!

    ResponderEliminar
  5. gostei do conto, gostei da música incidental
    mas achei preconceituoso... "a melhor trilha sonora pra um travesti que não existe e por isso se pode dar ao luxo de ser culto", primeiro porque gostar de Velvet Underground não torna ninguém culto, na verdade tenho visto que as pessoas menos cultas que conheço são exatamente aquelas que se dizem roqueiros pq acabam ouvindo somente isso, são normalmente as mais preconceituosas com outro tipo de música... em segundo lugar, eu conheço dois travestis que fazem doutorado, um na UFRN, outro na UFMG, as duas universidades que eu estudei, portanto considerar que somente um travesti que não existe pode ser culto é um tanto preconceituoso sim.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, Foxx, o conto é preconceituoso, mas não esquenta, não. Conforme você for lendo as coisas que eu escrevo, se você se interessar, é claro, você vai perceber que os meus textos são recheados de preconceito e senso comum. Eu trabalho muito mais em cima disso do que dos meus próprios pensamentos. Por exemplo, eu, o Walmir, jamais chamaria uma travesti de "coisa" ou "horrenda". Trata-se de um recurso retórico. Sou, contudo, dos que dividem a opinião de que a maioria de QUALQUER COISA é composta por idiotas, e tomar os seus dois doutores como parâmetro é tão arbitrário como as minhas putas. Não que isso justifique qualquer generalização. Mas este é só um texto literário, no mais genérico. Nem mesmo chega a ser um conto, em termos estruturais.

      Abraço.

      Eliminar
  6. uma palavra (ou mais): Puta que o pariu!!!!

    muito bem escrito e, penso cá, sem preconceitos e se os teve foi no contexto, acho perfeitamente encaixado no enredo e pude mesmo ver a agonia no espelho, nos dois lados.

    a trilha não é incidental, 'Candy says' tem como personagem Candy Darling uma trans M2F americana que virou ícone pelas mãos de Warhol e, desculpa Foxx mas gostar de VU é coisa meio cult e elitizada mesmo, é biscoito para ouvidos muito finos e eu mesmo não tenho preconceitos musicais mas reconheço que se não tivesse ouvido VU e as letras porrada na cara de Lou Reed não seria metade do que sou hoje.

    talvez, e vou ser não preconceituoso mas constatar fatos apenas, cada um ouve o que quer, se as pessoas ouvissem às vezes mais VU e menos 'quero tchu/tcha' haveria um pouco mais bom senso e educação no mundo, não muito mas um pouco mais....

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pela visita e pelo comentário, querido.
      Estou te esperando aqui no próximo post.

      Eliminar
  7. Pqp.... Cara, quero ser igual a vc quando eu crescer!!!!! Muito bom!!! Menino, vc é muito bom... Seria ridículo dizer q vc tem futuro... Vc já é um escritor completo!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nossa, Ju, Obrigado! O seu comentário me deu até crise de soluço. Não estava preparado psicologicamente pra ouvir isso.

      Eliminar