sexta-feira, 15 de junho de 2012

M. (parte 2)


Há uma cisão crucial entre narrar e viver. Sob a peculiar perspectiva de quem escreve e não de quem vive, pude revisitar a ocasião que se seguiu a minha penúltima postagem e ressignificá-la de todo. Há um bom e velho filósofo francês que trata dessa diferença e de como o significado das nossas memórias é construído de trás para frente, ou seja, de como, tendo já vivido um caos circunstancial de eventos incoesos, gratuitos – nem sei se cabe a palavra evento; a meu ver, eventos são apenas recortes ilógicos da realidade a que atribuímos um sentido específico –, amarramos fatos a fatos numa sequência que se permita compreender em termos de racionalidade e que, ainda, teria nos trazido à situação presente. Cada fato passa a ter a importância de ter contribuído para que a vida fosse como é. Desse modo, voilà!, os assim chamados episódios da vida de repente fazem sentido. Uma artimanha, segundo (permitam-me que me corrija) uma personagem do tal filósofo. Essa é uma espécie de encadeamento reverso, uma reconstituição do nexo causal de trás para frente, a partir de um fato considerado relevante. Nem ia falar disso, acontece que me desviei do foco.
Regardless, se comecei, não custa continuar. A disparidade entre narrar e viver, eu ia dizendo, consiste em não começarmos do começo. Se por acaso começo a dizer que ia encontrar uns amigos na Praça Zé Garoto e que a noite não anunciava nada, vocês, sim, vocês leitores, já se encontram inundados pela iminência de um evento extraordinário. Todo fato relatado só tem relevância enquanto um degrau que leva à concretização desse evento. Isso na narração. Quando se vive, entretanto, não há essa compleição definida de prenúncios. Quando se narra, mesmo quando se atém estritamente aos fatos [palavra perigosa, essa...], cuidando em ser objetivo, a própria seleção do que narrar deforma a realidade, viola sua própria condição de realidade. Daí muitos negarem que seja possível narrar histórias verdadeiras.
Sim, eu ia encontrar os amigos, mas era só isso? Foi o que eu apreendi. Nem sequer isso, nem sequer o apreendido é forçosamente o verdadeiro. Os próprios fatos persistem na minha memória em função do que veio depois, ou melhor, quem veio depois.
Recebera um telefonema alguns minutos antes. “Sim, claro que posso. Estou indo para aí.
Meses antes, encontrei-me perdidamente apaixonado. Apaixonado? É, vamos deixar assim. Eu disse no começo desta história que eu estava trabalhando num posto de gasolina. M. aparecia lá às vezes. Que sorriso cativante! Ele abastecia o carro, comprava uma cerveja, me cumprimentava e saía. Seu aspecto desleixado era outra coisa encantadora a seu respeito. Ele era meio grunge, andava com jeans rasgados, roupas largas, com a samba-canção à mostra. A maneira como ele fazia estremecer cada fibra do meu corpo é um desses tais mistérios entre o Céu e a Terra que a nossa vã filosofia ignora. Era bonito? Sim, mas não era para tanto. Decerto há homens mais belos no mundo, então por que demônios ele me atraía dessa maneira? Eu fazia esforços para permanecer impassível cuja natureza escapa ao relato e ao meu próprio entendimento. Os dias, a partir duma manhã sem nome, já nasciam e morriam em nome da minha obsessão. De repente, não mais que de repente, eu ia trabalhar para o ver. O auge do meu dia, eu sabia desde cedo, seria atendê-lo com um sorriso reativo ao seu, sem excluir toda a circunspecção para não sorrir demais.
Uma vez, não sei o que denunciou meu vício, ele me chamou para um canto e cheiramos pó à paulista. Na época não havia câmeras no posto. Foi o primeiro momento que dividimos, a trivialidade de se cheirar um pozinho com um amigo!
Chega de rodeios! E vou escrevendo e me perco nos preâmbulos da minha própria linguagem e reflexões. Eu caminhava para o ponto de ônibus. Destino? Praça Zé Garoto! Ia encontrar os amigos para conversar, quem sabe fumar alguma coisa.
O mundo encolheu, sem mais nem menos. Uma agonia estranha me sobe pela coluna como um espasmo e eu balanço a cabeça. Um carro branco para ao meu lado e abaixa a janela: era M.
Tá indo pra onde, meu querido?” Ah, M., para qualquer lugar! Para onde você está indo? Take me anywhere, I don’t care, I don’t care, I don’t care!
São Gonçalo”, eu respondi. Ele disse para eu entrar no carro. Obedeci. Sim, obedeci. Creio que seja essa a palavra. Sentei no banco do carona, olhando em volta do carrinho novo do doce amigo da minha família. Fui tomado por uma emoção inédita. Uma agonia, creio. Não, não uma agonia. Creio que me senti como um filhote de cachorro quando o pegam na mão e ele treme. Estava feliz, contudo. Era um misto de felicidade e esse sentimento de cachorro. Como? Que meios eu tenho de saber como se sente um cachorrinho? Um conselho: fiquem com essa descrição, que está ótima para a cara de vocês!
Cumprimentamo-nos, como se estivéssemos realmente interessados em saber como ia a mãe do outro. M. ao volante é a pessoa mais sexy do mundo. Mão direita ao volante, mão esquerda com o cigarro, um sorriso lindo e aqueles braços lindos. Um David de Michelangelo esculpido em carne por um artista pós-moderno, sem caretices. Cada veia aflorando naqueles braços, sob aquela penugem delicadamente viril era digna duma ode dum García Lorca da vida. Quis assumir esse papel. Eu mesmo escrevi cem mil versos para ele.
Onde em São Gonçalo?”, perguntou. Respondi, entre mil “se não for te atrapalhar”, “por favor, não quero ser um incômodo” e todas essas formalidades. “Quê isso...”, ele dizia, “A gente só vai passar num lugarzinho antes”.
Nenhum assunto digno das mais baixas conversações passava pela minha cabeça, nem mesmo remotamente. Ficava sentado, olhando para o meu All Star preto. Estava extremamente desconfortável com o silêncio e, ainda assim, gostaria de impedir os instantes de se aniquilarem. Gostaria de reter os momentos.
Ele dobrou à direita. Eu sabia para onde ele estava indo. Ia comprar drogas e foi o que fizemos. É neste ponto que esta história vira um pornô estadunidense mal escrito. Ele saiu do carro para urinar e a minha mente decolou. Tudo fazia parte duma certa mágica vulgar e decadente. Que música se seguiu! O zíper abrindo, o roçar sutil do seu pênis na cueca, o elástico chicoteando voluptuosamente sua pele e então a urina batendo com força no chão, transbordando em masculinidade. Meu coração palpitava. Sentia um pulsar ritmado nas têmporas, enquanto olhava para ele. Ele estava de costas, segurava o pênis de maneira que me era quase táctil e me fazia olhar para as minhas próprias mãos. Ele deu uma olhadela para trás e eu disfarcei, envergonhado. Que bundinha perfeita. Depois das sacudidas básicas, ele voltou para o carro e apoiou a cabeça contra o volante. Meus pulmões se encheram do seu cheiro forte de cigarro. Os segundos se arrastaram por uma eternidade. Que incômodo. Ele viu que eu estava olhando para ele. M. encontrava-se agora olhando para o chão do carro, a cuca contra o volante. Foi aí, precisamente, que os clichês pornográficos começaram:
Vem cá”, ele disse, “você é ativo ou passivo?” A frase estourou contra o meu peito como um tiro de escopeta. Pensei que ia ter um ataque cardíaco. Não gastei tempo elaborando frases dignas de serem escritas. Viver não é narrar:
O que você quiser que eu seja”, respondi apenas.

[continua]

8 comentários:

  1. Foi ótimo ler a versão escrita dessa história. Nas palavras verbais não tem as sensações. Genial! Espero ansiosamente pela parte 3.

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  2. A versátil hein ! :D

    Corajoso em encarar essa fumaceira...

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  3. estou ficando dependente das suas histórias!

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  4. estou ficando dependente das suas histórias!

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  5. Oh MY GOD... O que dizer dessa postagem? Cara você consegue ficar mais foda a cada dia, meu Deus... Se ultima postagem me decepcionou (não por ser ruim, mas se tratando de alguém como eu, que acompanhei esta história de perto, confesso que esperava mais), esta superou todas as minhas expectativas... Fico imaginando como serão as próximas... Tá, chega de rasgar seda... Adorei a postagem, conseguiu ser mais emocionante do que seu próprio relato a mim na época do ocorrido... rsrsrs
    Enfim, que venham as próximas... ;)

    Beijos, putinha do posto! hauahauaha... até!

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  6. Caraca jurava ter comentado, mas enfim .... Suas vivências têm muito à ver com a cuca do Bratz, mas nunca experenciei com toda esta intensidade. Fantástico, intenso, forte. Sua forma de decodificar em palavras suas emoções é incrivelmente bela. Como disseram, tornei-me dependente de suas pastagens.

    Bjão

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